Fugas - Viagens

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Lembras-te de Sarajevo?

O eléctrico com o jovem mochileiro segue, eu fico sentado, num daqueles bancos de beira-Miljacka: e como é que até hoje eu ainda não tinha lido A Fortaleza que começo a ler agora neste banco? Serve-me de consolo que é tão bom começar um livro no sítio certo. E é impossível amar Sarajevo e compreender os Balcãs, avisara-me um dia a minha amiga Marija, sem beber do rio de Selimovic.

Não vale a pena relatar massacres terríveis, o terror humano, as atrocidades cometidas por ambos os lados. Não vale a pena recordar, seja para lamentar ou glorificar. O melhor é esquecer. Que morra a memória das pessoas sobre tudo o que é feio, para que as crianças não entoem canções de vingança.

Também foi a Marija Danic, refugiada fugida de Sarajevo naquele Abril de 1992, daquele modesto prédio socialista ali do outro lado do rio — é mesmo aquele, confirmo nesta fotografia recente que ela me mandou há dias por email, abraçada a um dos amigos da infância abandonada —, também foi ela quem me falou, pela primeira vez, do Museu ‘Infância na guerra’. Daqui a algum tempo, também lá estarão no museu as páginas do diário que ela escrevia no início daquela Primavera, quando o inferno invadiu o seu bairro de Grbavica. Ela lembra-se de ouvir os sinos das igrejas em comunhão sonora com a voz do muezzin. E tu, Nick Cave, lembras-te?

Escrevi ‘Into my arms’ quando estava numa pequena capela em Sarajevo, escondida lá em cima atrás das colinas..

Seria a própria Sarajevo a tua musa, Nick Cave?

And I don’t believe in the existence of angels / But looking at you I wonder if that’s true / But if I did I would summon them together / And ask them to watch over you

Não, Nick, os anjos não olharam pela nossa musa.

Grbavica foi um dos lugares mais duros do cerco. No filme que recebeu o nome do bairro, com o qual Jasmila Zbanic ganhou o urso de ouro em Berlim em 2006, a actriz sérvia Mirjana Karanovic faz o papel de Esma, uma mulher bósnia muçulmana violada por um homem de origem sérvia durante a guerra. Sara, a filha, pensava que o pai era um herói de guerra morto a lutar pela cidade. Na cena final, aqui em frente ao Holiday, Sara e as amigas partem de autocarro, numa excursão da escola secundária. E enquanto nós vamos tentando matar as memórias mais feias do filme, para que as crianças não entoem canções de vingança, a filha de Esma e as amigas vão trauteando o popular tema de Kemal Monteno, escrito em 1976, Sarajevo, meu amor.

Esta paragem do 3 permite descascar muitas camadas da cidade até sentirmos Sarajevo Now, como está inscrito numa pequena faixa pendurada no muro do Museu da História da Bósnia e Herzegovina, cujo nome gravado na pedra branca suja, em círilico e em latino, é uma das poucas marcas arqueológicas da convivência dos dois alfabetos deste lado da cidade. Para muito círilico, só mesmo indo a Sarajevo Leste.

Nas traseiras contíguas ao paralelipípedo suspenso do edíficio do museu, fica o Café Tito — não é “jugonostalgia” para turista ver, é mesmo “jugonostalgia”. Acaso desta passagem: mesmo em frente ao solene e autoritário busto de Josip Broz, uma jovem estudante universitária endorsa uma t-shirt do The Wall dos Pink Floyd. Tito olhos nos olhos com um muro.

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