As árvores deste Abril salpicam de manchinhas brancas as encostas por onde a cidade sobe até se transformar em aldeia. Era numa colina como aquela ali, onde um pequeno cerejal tão florido evoca as últimas lágrimas de neve de um Inverno a sair de cena, que ficava o ninho do amor de Ahmet e Tijana, imaginado por Mesa Selimovic. Uma primeira edição de A Fortaleza, publicado em 1970, foi de certeza absoluta um dos milhares de livros que arderam no verão de 92, quando a líndissima Vijecnica foi bombardeada. Há quem se lembre das cinzas do livros, a voar pelos bairros vizinhos.
A caminho da Biblioteca “reaberta” em 2014, que recuperou o seu papel de câmara municipal de Sarajevo (o que também já tinha sido noutras épocas), paramos para comprar um maço de Drina, que há aqui muita gente que fuma como quem bebe água. De olhos nas letras gordas do quiosque, faço regressar o meu amigo à sua personagem sem bigode: e agora Faruk Boric, tu que já foste director do Oslobodjenje, da revista Dani e da Agência de Notícias da Bósnia antes de chegares aos 40, qual é a manchete dos amanhãs?
Isto é bonito e interessante para quem nos visita, como este grupo de turistas. Mas nós vivemos numa tribocracia, um sistema político que é uma espécie de neo-apartheid étnico.
A política voltou para a Vijecnica, os livros não.
Aqui no ventre do vale, o 3 faz uma curva quase impossível, iniciando o trajecto em sentido contrário. Do outro lado do Miljacka, fica o bar-restaurante Kuca Inat no sopé da colina de Alifikovac, que adoro subir até ao fim para ver o pôr do sol, desde o cimo do cemitério, mordiscando um mali somun comprado na padaria do bairro, mesmo sem os melhores cevapi da Bascarsija, a zona velha. Bem lá no topo, a vista é quase a mesma daquela fotografia dupla da histórica imagem que a revista Dani publicou no final do primeiro ano do cerco, com o título bilingue, Do you remember Sarajevo / Sjecas li se Sarajeva?, que haveria de ser o motto que também virou título do documentário dos irmãos Kresevljakovic, cuja história dava toda uma outra viagem ao longo deste vale.
Ao descer, sorvo lentamente um café turco na Kuca Inat. Inat é uma forma de resistência a uma força oposta, palavra visceral desta língua servo-croata-bósnia, toda uma ensaística para tentar traduzir aquela que é uma das realidades mais intraduzíveis dos Balcãs. Em português, talvez ninguém se tenha aproximado tão bem como o ex-jornalista Pedro Rosa Mendes, que se lembra de Sarajevo, sem nunca aqui ter posto os pés.
Quando vieres Pedro, não percas o Museu ‘Infância na guerra’, olímpico esforço de Jasminko Halilovic, Amina Krvavac, Selma Tanovic e restante equipa. Tudo começou com o projecto de um livro que Jasminko editou em 2012, juntando mais de mil frases de crianças que viveram a infância no cerco e a quem ele pediu, até um limite máximo de 160 caracteres, um tweet da memória de quando não havia tweets, uma frase, para um mural em forma de livro. O livro cresceu tanto, com histórias do resto da Bósnia e Herzegovina, que agora é um museu, porque muitos dos testemunhos, constatou Jasminko, contavam uma pequena história associada a um objecto. Como aquela do vestido azul de Emina desafiando os snippers. Um vestido, um brinquedo, um diário, um urso de peluche, uma guitarra, são já mais de 3000 objectos, outras tantas histórias no espólio do museu sobre o qual ainda mal consigo escrever alguma coisa. Está aqui representada, com uma dignidade inenarrável, a infância que foi roubada a estas crianças, que não puderam atravessar Primaveras como eu ou tu. Acho que nunca chorei tanto, mesmo se também sorri tanto com algumas destas histórias. E cerrei os punhos, com a criatividade, a resiliência e a energia destes heróis da paz. Como Nadja, nascida em 1978, de cujo diário do cerco copio para o meu caderno a letra de Sarajevo, ljubavi moja. Por entre as memória de Nadja, reencontro um recorte da tal capa da Dani de 17 de Maio de 1993, com as duas fotos, tiradas antes e durante a guerra do cimo daquela colina, com o eterno título: Lembras-te de Sarajevo?