Também vizinho do Miljacka, o Museu Nacional começa na própria rua com as seculares pedras tumulares no relvado em frente ao edifício de arquitectura austro-húngara, porque aqueles mortos chegaram ali antes do museu, não fosse a relação dos túmulos com o corpo vivo da cidade umas das características mais fascinantes e únicas de Sarajevo. Poucas centenas de metros à frente, páro quase sempre no pequeno "parque das pedras" onde me interpela a estátua rectlínea de Djuro Djakovic (comunista morto em 1929), não só porque parece que ele se abraça a si próprio - o que é algo intrigante - mas porque a estátua tem algumas marcas de balas que, provavelmente, vão perdurar mais tempo na pele da escultura do que aqueles buracos na fachada de um prédio ali não muito longe.
Foi numa das pontes desta zona onde, a 5 de Abril de 1992, morreram Suada Dilberovic e Olga Sucic atingidas por um snipper, no meio de uma grande manifestação pela paz. É considerado o primeiro dia do cerco. No chão, numa ponte vizinha, alguém desenhou dois quadrados e escreveu "LUGAR PARA BEIJOS", enquanto a tinta vermelha das rosas de Sarajevo - intervenção artística que marcava lugares manchados de sangue - se vai apagando. Mas quem conhece, identifica logo a calçada de asfalto arranhada pela vida que provavelmente caíu ali, aos nossos pés. E lá muito de vez em quando, ainda desponta um borrão em que a tinta vermelha permanece, para nos lembrarmos como são bons os lugares para os beijos. Into my arms, oh Sarajevo!
Ser criança agora!
Vai engrossando o rio humano que é o nosso 3, meia cidade deambulando dentro do eléctrico, entre Ilidza e Bascarsija. Próxima estação: Teatro Nacional. Foi na actual praça Susan Sontag que a intelectual norte-americana, com Haris Pasovic, encenou À espera de Godot, no Festival de Teatro e Cinema de Sarajevo, em 1993.
Serpenteando de novo o rio, ao lado da sinagoga, é impossível não reparar no Papagaio, edifício socialista-tropical (deve ter sido uma inspiração não-alinhada), logo seguido de uma pequena mesquita. De olhos por cima do mapa, é possível descobrir algumas cruzes cristãs em latitudes próximas, mais ou menos escondidas do horizonte visual. E eis-me no jardim do pavilhão musical, onde sempre me sento a tomar um café, desta vez a imaginar a escritora Alexandra Lucas Coelho a conversar aqui com uma das suas personagens de Ž, conto passado entre Belgrado e Sarajevo, que saiu no PÚBLICO a 17 de Maio de 2015.
Recordo uma personagem de Alexandra que se lembrava da infância passada numa cave-bunker-escola. Havia uma bicicleta parada e ele e a mãe — o pai estava na linha da frente — pedalavam para produzirem energia para um rádio dar notícias, cinco minutos que fosse. E talvez ouvissem, efabulo, a lendária rádio Zid do não menos lendário Zdravko Grebo. Podia estar a passar aquela cassete — ou seria uma bobine? — do primeiro concerto internacional do cerco, em 1993, quando depois de Imagine de John Lenon, Joan Baez cantou Sarajevo, ljubavi moja, a melodia de Monteno, original que corre agora em fundo nas colunas do café.