E de repente parece que alguém tinha escrito este guião: uma mulher de mais de 30 anos levanta-se da mesa onde estava com os amigos e vai sentar-se no dorso de um pequeno Estrumpfe, daquelas máquinas para crianças, e vai introduzir na ranhura uma moeda de um marco, para um minuto de alegria. Será que o Estrumpfe aguenta o peso de um adulto? Cai a ficha, o Estrumpfe balança para trás e para a frente, até que os amigos troçam dela carinhosamente, que já não tem idade para brincadeiras, dizem eles, e ela:
Quando eu era criança havia uma guerra, posso ser criança agora!
25 anos depois.
Passamos a Ponte Latina, com a narradora de Ž, no mesmo sentido em que o Arquiduque a atravessava em Junho de 1914, quando a Europa já morria nas pontes.
Na esquina em frente há um minimuseu onde podemos ver, por exemplo, como as armas do assassino — Gavrilo Princip — eram mínimas. Um revólver menor do que a palma da minha mão. Ele próprio parece um homem pequeno, de olhar melancólico. Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como anti-otomano, que acreditou febrilmente numa futura Jugoslávia.
Lembras-te de Sarajevo, Alexandra? O assassinato naquela esquina do mundo até dava um outro conto, com detalhes tão (in)verossímeis, dignos do melhor humor bósnio, como aquele frame a preto e branco em que um dos cúmplices de Gavrilo, ao falhar uma das tentativas anteriores para eliminar Ferdinand, e não tendo por onde fugir, esboça um suicídio, atirando-se de uma daquelas pontes de poucos metros de altura para o Miljacka, de facto, quase um riacho.
Saio do Museu e dou de caras com um Charlot a cores. Se eu fosse o Charlot — pedira-lhe eu uma vez aqui, no centenário da Primeira Guerra Mundial, com o microfone da rádio já ligado: estamos em 1914, se eu fosse, continua Faruk...
O que é que eu, Charlot, faço neste momento do atentado? Não sei bem se sou um homem com consciência de que a História está a passar à minha frente, da mesma maneira que este eléctrico passa pela rua. O que é que o Charlot faria aqui?
(muitos risos, longa pausa)
Talvez começasse a chorar... Imagino que ele se ia embora, vagabundeando por algumas destas pequenas ruas. Ou então apanhava um táxi e dizia numa linguagem que ninguém ia perceber: “Foge, foge, foge! Para qualquer lado, para o Norte, para o Oeste, para qualquer lado!...” No fundo, neste lugar sente-se uma espécie de excesso da História que não se pode explicar. Esta nossa Sarajevo talvez tenha demasiada História para uma geografia tão pequena.
Faruk Boric tem mesmo o seu quê de Charlot. Não fisicamente, como até Gavrilo teria, mas naquele caminhar e no seu je ne sais quoi de criança. Vir a esta cidade é isto que não cabe em guias de viagem: ganhar amigos, brincar com eles, descobrir pessoas monumentais, ajudá-los a continuar Sarajevo. Porque alguns deles lembram-se do que é perder um amigo numa guerra, enquanto eu só perdi, e ainda não o sabia, os amigos daqueles que haveriam de ser os meus amigos de hoje. Só me posso lembrar daquilo que se lembram os meus amigos.