João — que não tem o sobrenome Cunha no cartão de cidadão mas faz questão de se apresentar com ele e assinar as suas peças assim — anda nisto desde menino. Estudou na Escola Industrial, mas a tarimba ganhou-a na oficina do avô num tempo em que “não havia colégios para tomar conta dos meninos”. João Cunha passava os dias na casa da avó, ali ao lado, e sempre arranjava forma de escapar até à loja. Entre alambiques e máquinas de sulfatar, foi escolhendo o seu destino. “Há quem diga que o cheiro a verdete do cobre se entranha e parece que é verdade”, graceja.
As máquinas com as quais trabalha ainda são as mesmas que o avô usava. Tal como as peças fabricadas, eram “feitas para durar 200 anos” — bem diferente do que se produz agora. João teve a sorte de as herdar, mas já sabe que não terá a quem as passar. Os dois filhos escolheram caminhos diferentes. E isso, sublinha, não o aflige. “A vida não se compadece com saudosismos. Sempre achei que o artesanato não passava de pais para filhos. Ou se nasce artesão ou não se nasce. Eles têm a vida deles.”
Júlia Ramalho não encara a coisa com a mesma leveza. Perdia horas de sono a pensar na continuidade da arte que a sua avó começou e ela não quer ver morrer. Por isso, quando o filho António se agarrou ao barro ela iluminou-se. Há dias em que os seus 71 anos já não a deixam trabalhar como noutros tempos. Mas Júlia não se deixa vencer — sempre com a avó Rosa Ramalho no pensamento. Porque com ela aprendeu tudo.
Foi António Quadros, escritor e figura emblemática da filosofia portuguesa, quem lhes mudou o destino. Conta-se que um dia se cruzou com Rosa nas Fontainhas, no Porto, e se pasmou com a forma como a senhora trabalhava o barro. Com a cultura popular gritante nas suas peças de ar surrealista. Júlia, a neta predilecta, começou a mexer no barro em 1956, dez anos completos. Moldou “um cavalinho pequenino” e nunca mais parou. Com a avó ia para todas as feiras de Barcelos e um ano foram mesmo até Cascais. “Vendemos tudo no primeiro dia.”
Com o seu barro vidrado cor de caramelo, Júlia Ramalho cria aquilo que lhe vem à cabeça. Por impulso. Gosta muito das suas medusas de mil cabelos e dos bonecos dos sete pecados mortais, que um dia foram falados no “1, 2, 3” de Carlos Cruz, na RTP; menos dos diabos. Faz figuras religiosas, cristos, molda episódios da vida rural e também profissões. Se um dia lhe saísse o Euro Milhões, continuava a trabalhar. “A felicidade que me dá estar numa feira não há dinheiro que compre.”
Em Barcelos, a olaria é a expressão maior de uma sintonia biográfica que une centenas de famílias e aferroa rivalidades. As louças locais levaram o nome da cidade a todo o país — e além-fronteiras —, e converteram-se no principal sustento económico do concelho. O figurado, subsidiário da olaria, começou por ocupar os lugares vagos nos fornos de cozedura. Eram brinquedos, sobretudo, às vezes com instrumentos musicais (ocarinas, gaitas, rouxinóis) incorporados. Mas com a ajuda da elite cultural do Porto esta expressão popular ganhou espaço em meados do século XX, com artistas como Rosa Ramalho, Rosa Côta, Mistério, Maria Sineta ou Ana Baraça. E da representação do quotidiano passou-se também para o imaginário religioso e interpretação de rituais e lendas de tradição oral.