Fugas - viagens

Nelson Garrido

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O regresso dos moinhos

 

Moinhos da Anacom, Queijas: Como passar umas horas no campo

Quando o "sr. António" se senta cá fora, os carros que passam na estrada ali ao lado abrandam. A vista sobre o Tejo e o mar está do outro lado, mas é para este terreno que toda gente olha. Para o terreno onde a silhueta elegante do moinho da Moita ergue as suas hastes para o céu. À porta, o velho moleiro mantém-se imperturbável perante os assomos de curiosidade. O que, para ele, não é difícil: o "sr. António" é uma estátua.

Há muito que não há gente a trabalhar em permanência neste moinho situado nos terrenos da Anacom, a autoridade nacional para as telecomunicações, no alto de Queijas, concelho de Oeiras. Os moinhos da Moita e da Cruz foram recuperados em 2000, o segundo para poder funcionar como nos velhos tempos, o primeiro para fazer as vezes de auditório e centro de interpretação. Como ali ao lado há um parque de merendas à sombra de um enorme sobreiro, não surpreende que este seja um belo sítio para se passarem umas horas no campo.

A figura do "sr. António" representa um moleiro, elegante e imaculado no seu colete castanho. Pode parecer estranho, mas não é. Porque o moleiro não era bem um trabalhador braçal. Era assim uma espécie de capataz, bastas vezes responsável por vários moinhos. Quem dava realmente no duro eram os bandejas, os migrantes que chegavam a Lisboa vindos da província com uma mão à frente e outra atrás - a eles cabiam as tarefas mais duras e eram eles que viviam nos moinhos.

Era toda uma estrutura de produção, m a que assentava nos moinhos nesta era pré-industrial do século XVIII. Os proprietários (nobres, colegiadas, burgueses endinheirados) aforavam-nos aos foreiros, que os arrendavam aos rendeiros. Estes, normalmente, contratavam moleiros, que pagavam a bandejas para trabalharem nos engenhos.

Na Lisboa desta era, cerca de 80 por cento do trigo que se consumia era importado (e o mesmo se passa hoje). O cereal chegava em barcos e era transformado em farinha nas centenas de moinhos que proliferavam nas colinas dos arredores da capital do império, que por essa altura quase duplicou a sua população em poucas décadas, alcançando as 300 mil almas.

O negócio florescia. Os sacos chegavam cheios de grãos e saíam, mais pequenos, carregados de farinha. Virá dessa discrepância a fama dos moleiros, que o folclore classifica como ladrões. Bom, reconheça-se que muitos "metiam a mão" no produto, mas a verdade é que uma noção elementar de física permite perceber que o espaço entre os grãos é muito maior do que entre as partículas da farinha. Quantidades iguais pesarão o mesmo, mas o volume dos primeiros é muito superior.

Os moleiros eram vistos como espertos e tinham mesmo de o ser. Ou pelo menos carregar consigo a sabedoria acumulada pelos antepassados. Tinham de saber fazer contas às voltas das velas para perceber se a velocidade da mó não ultrapassava as 120rpm - mais do que isso começa a queimar a farinha. E tinham de saber ouvir o moinho para afinar o engenho ou evitar desastres. As vasilhas de barro que ornamentam os cabos junto às velas estão lá por uma razão: emitem sons diferentes conforme a velocidade do vento e a humidade relativa do ar. Sim, os moinhos cantam. [Luís Francisco]

Visitas:  Anacom | Fernando Oliveira; Tel.: 21 434 85 00 | Etnoideia, www.etnoideia.pt
Tel.: 21 415 92 02; Jorge Miranda 96 397 90 18 ou 96 586 15 67

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