Fugas - voltaaportugalem80dias

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De Montemor-o-Novo a Vila do Bispo: O chão que nós pisamos

Parece que um trabalho de reparação do telhado perturbou a vida calma das cobras caseiras e estas agora aparecem aqui e ali. “No outro dia caiu uma do tecto”, revelou. Que seja pela arte! De modo que lá fiquei eu, o “artista” convidado, a escrever estas linhas com alguns olhares de soslaio, de quando em vez, ora no quarto ora nas mesinhas do claustro, usando o espaço e o tempo como se fossem meus.

Tailândia, Brejão

Na manhã seguinte lá estava o pão fresco na cozinha. Comi-o com a satisfação de não me ter cruzado com nenhuma cobra performativa – o mais que vi foram umas osgas bailarinas. Voltei a almoçar (onde jantara) no Monte Alentejano, na companhia luminosa da Dona Maria do Céu e do marido José Barros, proprietários da casa, e segui viagem, porque a estrada tem mais a ver com partidas do que com chegadas.

Desci o Alentejo como uma criança sonolenta, de barriga cheia da açorda do almoço, e algo caprichosa, saltando cidades consoante o espírito do momento. Parei para beber café em Grândola. A vila continua morena, mas pareceu-me agora muito tímida e calada. Em Santiago do Cacém mal tive tempo de pisar o chão. Viajar é também perder histórias. E ficarei sempre sem saber qual a história do senhor que me pediu 50 cêntimos, em Odemira, para beber um café. “Preciso muito de beber um café”, disse-me.

Cheguei a Brejão com o dia a pôr-se. Mais tarde, desceria ainda até à Vila do Bispo e daí até ao Cabo de Sagres, perdendo-me nas estradas desertas, pejadas de pneus, casas e cães abandonados, acabando a noite a contemplar a vista mais a sul do país. Mas primeiro quis conhecer a comunidade tailandesa a viver em Brejão. Tinha ouvido dizer que eram perto de 100 e que trabalhavam sobretudo nas plantações e estufas nas imediações da aldeia.

Encontrei um pequeno grupo de quatro jovens tailandeses junto ao supermercado. Tocavam e cantavam temas sobre a sua longínqua terra. Ao vê-los tão emocionados nas suas melodias recordei-me de uma frase de Salman Rushdie, em O Chão que Ela Pisa: “As nossas vidas não são o que merecemos, são em muitos casos dolorosamente deficientes. A música transforma-as numa qualquer coisa diferente. Mostra-nos o que nós próprios poderíamos ser se fôssemos dignos desse mundo”.

Enquanto Ohm, Nat e Pree tocavam, Ban-Thai ia entrando e saindo da loja para abastecer todos de cervejas. Ohm é o único que fala inglês. Simpático e com vontade de conversar, logo me convidou a sentar, contando-me que chegou a Portugal em Março. Quer juntar “muito dinheiro” para regressar para a sua terra e abrir um negócio de fabrico de ténis. Pelas suas contas precisará de trabalhar três anos numa estufa. “Na Tailândia dava aulas de japonês”, revelou. Os outros continuavam a cantar e iam sorrindo também para mim. “Os tailandeses são tímidos por natureza”, acrescentou Ohm. “Mas gostam muito de dar, de oferecer”.

E eis que chegou Ban-Thai com nova rodada de cerveja. Estendeu-me uma, enquanto Ohm apontava para Pree. Queria dedicar-me uma música pela minha simpatia. “A mim?”. Notas simples mas bonitas. Ohm foi traduzindo a letra. Algo do género: “Conhecemo-nos para logo dizermos adeus que tenhas sempre um braço amigo/para te ajudar a deitar depois do trabalho/para te ajudar a levantar depois do descanso”.
“E gostas de Brejão?”, perguntei a Ohm. Sorriu. “Tenho mulher e um filho pequeno na Tailândia”. Do que ele gosta mesmo é do Barcelona. E do Benfica, por causa do “Pablo Aimar” e de Pearl Jam apenas porque é “bom”.

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