“Andam a dar a volta ao mundo?”, perguntou dona Maria. A questão é recorrente. “Não, só a Portugal”, respondi. “Então, mas porque vieram aqui?”. Hesitei. “Bom, porque também pertence a Portugal”. Nada convencida, ripostou. “Ah, e nós não pertencemos ao mundo?”. Já meio atrapalhado. “Lá isso é verdade, pertence”, disse. “Então também andam a dar a volta ao mundo”...
Há conversas que estreitam horizontes. Outras que alargam a perspectiva. Sentado num pequeno banco, na aldeia de Lavacolhos, a terra dos bombos, ao lado da dona Maria, oitenta anos, bata às flores e sorriso com uma ou duas pétalas caídas, recordei o que escreveu Virgílio Ferreira, em Pensar: “O horizonte varia consoante a altura que temos. Só não varia nunca o ser variável, enquanto horizonte que é, ainda que por absurdo se atinja. Porque nunca é o horizonte que nos fascina mas a distância a que está.” Por vezes temos dificuldades em focar-nos no que está perto, enfeitiçados que estamos com o ponto mais distante. Quando temos a serra da Gardunha escancarada à nossa frente é muito fácil acontecer. Nada como olhá-la a partir da nossa altura. Das nossas variáveis.
Nesta semana, passados 50 dos 80 dias da Volta a Portugal de Citroën C4 Cactus, estacionámos no Fundão para fazer uma residência literária na Pousada da Mina, no Cabeço do Pião, e assistir ao I Festival Literário da Gardunha, evento do qual fomos parceiros. Não raras vezes é preciso parar, respirar fundo e dar um mergulho nas águas frias do rio Zêzere. Não faltam praias fluviais como a de Lavacolhos para esse efeito.
À boleia da literatura
“A viagem começa aqui” foi o tema lançado ao debate aos trinta escritores que estiveram no festival. Tiago Salazar, Alexandra Lucas Coelho e o fotógrafo Pedro Loureiro fizeram uma residência artística em pontos distintos do Fundão. O objectivo era beber inspiração no cenário da serra. Já a nossa missão no festival era um pouco diferente: ir a Madrid para dar boleia a Javier Reverte. Combinámos encontro numa calle de sentido único, onde vive o consagrado escritor de viagens, autor de livros como Canta Irlanda, Os Caminhos Perdidos de África ou Deus, o Diabo e a Aventura, entre tantos outros — e tão poucos traduzidos para português. Ironias. Quando chegámos ao ponto de encontro já ele estava à porta. Pontual. A mim coube-me o volante e a Reverte o banco de trás. Fez disso questão. “De certeza que não quer vir à frente?”, insisti, por achar estranho conduzir o destino de alguém com tantos quilómetros nos olhos. Mas a questão estava errada. Na verdade, nunca se dá boleia a alguém como Javier Reverte. Acaba sempre por ser ele a conduzir-nos nas suas histórias.
De conversa ligeira como a mala que sempre transporta, Reverte explicou que ainda continua a ter o mesmo apelo pela viagem. Pelo partir. Pelo ficar. E por contar a história. Começou a apaixonar-se pela “partida” ainda como jornalista. Foi correspondente em cidades como Londres, Paris e Lisboa — que trata por tu — nos anos setenta. A literatura de viagens aconteceu um pouco por acaso na década de 1990, depois de uma estada de três meses no Uganda. A África negra seduzia-o há muito, desde os tempos em que era apenas mais um miúdo madrileno asfixiado pelas garras do franquismo. E além do mais era “tudo muito barato”. Javier Reverte foi ficando, porque o escritor de viagens é o que vai ficando nos lugares. Sempre “só”, de mochila às costas e sem Internet ou telefone.