O passeio pode demorar entre 20 a 60 minutos. Depende bastante do que for surgindo pelo caminho: cegonhas, corvos, milhafres, águias-imperiais, abutres negros e até veados - que não evitam beber água nas margens do rio.
Diferenças entre as duas margens? “Do lado espanhol há uma maior agilidade e flexibilidade em torno de um plano de ordenamento do território que é comum aos dois lados”, admitiu.
Quando estacionámos o C4 Cactus no cais inaugurado em 2012 ainda pensávamos que seria possível dar uma volta de barco. Só depois percebemos que os passeios estão reservados para os fins-de-semana ou para quem tenha a inteligência de fazer uma marcação prévia...
Deixámos Domingos Leitão a colocar trancas ao porto, que até no paraíso existem vândalos, e a sonhar com o dia em que lançará às águas réplicas dos barcos que os romanos aqui usavam como transporte de cereais e azeite, “seguindo o Tejo por Lisboa e até Roma”.
Nessa noite, ainda visitámos a ponte romana sobre o rio Erges, mas não pusemos uma rodinha que fosse em solo espanhol. Depois, seguimos pela Estrada Municipal 18, até Rosmaninhal, via que perfura o coração e os pulmões do Parque do Tejo Internacional. De tão deserta que estava, e com a noite a cair, pudemo-nos deitar os três, em plena via, a olhar o céu. No meio do nada a contemplar o tudo. “Em Lisboa, as estrelas não se conseguem ver assim”, disse o João Oliveira. “Parece que estão a fumar um cigarro e a olhar para nós”, concluiu Rui Pelejão, soltando uma baforada. Eu fiquei em silêncio, apenas a observar as estrelas que nunca vejo em casa, à espera, de alguma forma, que me caísse em cima uma borra de cinza.
O fado e o Tejo
Pela manhã havia que começar a descer. Mal o sol começasse a subir. Fizemos uma paragem estratégica em Santarém para visitar a feira gastronómica e recordar muitos dos pratos típicos nacionais que fomos provando ao longo da viagem. Mas o nosso destino era já Lisboa, Alcântara. Um convite de uma amiga, assistente social, Mónica Santos, para ouvir um excepcional fadista de 92 anos pareceu-nos um final perfeito para a aventura.
O fado estará na moda e poderá até ter granjeado já o reconhecimento internacional, mas não será todos os dias que se priva com uma escola de fadistas. Uma ou duas vezes por semana, 22 alunos, com idades entre os cinquenta e tal e noventa e picos treinam a voz e afinam os sentimentos.
Como a ocasião era única, o ensaio decorreu na capela de Santo Amaro, local que ganhou ainda mais carga emocional por todos os alunos serem de Alcântara. Manuel Coutinho tem 92 anos e canta fado vadio há mais de oitenta. Número redondo, figura fina. “Cantei com o filho do Alfredo Marceneiro e muitos outros”, recordou, mas “todos eles seguiram as suas carreiras e eu fiquei aqui”.
Enquanto caminhávamos para a capela, confessou, com um sorriso, que, apesar de ser “filho de Alcântara”, nunca tinha visto o impressionante cenário do alto da igreja, com o Tejo e a ponte enquadrada nos arcos do século XVIII.
Dos tempos das “cegadas”, a memória mais profunda é a das “velhinhas a chorar nas mesas da frente”. Arrasava corações. Até o seu. E muitas vezes teve de “sair de cena, também em lágrimas, pela emoção”. Hoje ainda mantém o ar sedutor. Altivo. Durante o ensaio trajou um casaco amarelo, de uma elegância intemporal. E sentou-se a duas filas do palco improvisado na capela. Cada aluno cantou à vez. “Preciso de tirar umas notas”, disse, um tom abaixo, para a professora Helena Nunes, fadista, artista de teatro e vencedora nas Noites de Fado, no Coliseu dos Recreios, em 1982. “Foram 50 fadistas a cantar para 9000 pessoas”. Ganhava quem ouvisse mais palmas. Ganhou ela.