Meia-hora antes daquele “clic”. O nosso diário de viagem assinala 20 de Agosto de 2007. Vá para onde vá, este diário acompanha-me sempre. Um dia, eu sei, ele será a minha máquina dos sonhos quando sonhar eu já não souber.
Hoje ele está aqui, connosco, no noroeste da Turquia. Em Istambul, nesta mítica cidade com que a Ana Maria sonha desde os seus tempos de infância e que lhe aquece a alma e aguça os sentidos.
Caminhamos tranquilamente no lado europeu da cidade. Istambul é a maior cidade da Turquia e a única cidade do mundo que está situada entre dois continentes: o europeu e o asiático. Algures um relógio assinala uma efémera hora local: 22h53m.
Caminhamos deitando palavras ao ar em conversas desbaratadas pelo vento quente. Percorremos a zona histórica do que resta do antigo hipódromo romano de Istambul. Hoje é apenas uma praça com o nome de Sultanahmet Meydani, ou, como se diz no idioma de Camões, a Praça do Sultão Ahmet.
A noite, essa, continua estupidament quente. Ali ao lado o mar de Mármara, teimando em separar o mar Negro do mar Egeu, corre veloz para o Bósforo. Nem uma brisa refrescante se solta à sua passagem. Neste silêncio profundo quase somos traídos pelo vento que nos faz pensar que escutamos as quadrigas de cavalos do imperador Septímio Severo correndo velozes na pista do hipódromo. Relinchando e levantando no ar grossas nuvens de pó para gáudio dos quase 100.000 espectadores presentes neste “circo” romano.
Mas o nosso fado leva-nos pelo bairro de Eminönü, onde olhamos parvamente para as luzes azuis que cavalgam as cúpulas da mesquita otomana de Sultanahmet Camii, mais conhecida mundialmente como a Mesquita Azul de Istambul. Esse azul contrasta com as luzes vermelhas que escorregam pelas fachadas da Basílica de Santa Sofia, conhecida pelo nome grego de Hagia Sophia, que quer dizer Sagrada Sabedoria. Um contraste de luz e cor digno de um conto das Mil e Uma Noites de Sherazade.
Quando os primeiros colonos dóricos fundaram esta cidade, à qual dariam o nome de Bizâncio, em honra do seu rei Bizas, estariam bem longe de sonhar o quão grande e imponente ficaria a cidade que fundaram. Eles e o imperador romano Constantino, que lhe legou depois o seu nome para a posterioridade.
Hoje, Istambul ainda mantém intacta essa capacidade mágica de nos transportar para esses tempos de outrora que nunca mais voltarão. Ainda se sente, por exemplo, a magia do Expresso do Oriente, trazendo a famosa escritora Agatha Christie desde Paris até à estação terminal de Sirkeci Station.
De tão inebriado que estou neste momento até julgo sentir nos meus ouvidos o “zumbido” do grande Império otomano: aqui e ali, em passeios de ruas e becos, fazem-se pinturas de henna. Homens bem-apessoados, de fartos bigodes, vendem especiarias coloridas indispensáveis à gastronomia otomana.
Em alguns bazares, de mercadores bizarros, crianças riem-se desmesuradamente ao ouvirem os velhos contadores de histórias de tempos que nunca mais voltarão. Uma senhora empurra um carrinho de fruta. Aos nossos ouvidos chegam árias, de músicas dervixes. Roupas diversas exibem-se dando especial relevo às camisolas dos clubes de futebol turco. Mulheres de cara tapada passam por nós sem nos verem. Os cheiros são intensos, os sons ainda são mais fortes. As cores, essas, levam-nos à loucura. Cruzamo-nos com vendedores de çai (chá), com os seus trajes coloridos, de pote de chá a tiracolo. Segurando numa mão uma mangueira por onde sai o chá e na outra mão um copo, sempre prontos a servirem o mais sôfrego dos viajantes.