Quando os bois brincam
“Assim é que tem graça”, confessa o nosso salvador de Alfaiates que anda por aqui pelo gosto mas também pelo negócio. “Vou apanhando uns e outros e ao fim do dia juntam-se todos lá no bar [Muralhas] para ver os filmes.”
Mas, para já, o filme a que assistimos anda entre uma doida metragem de acção e um clássico western. Por nós vão passando cavaleiros de suor a escorrer em bica montados em cavalos que já agradeciam o descanso. “E nem sequer está o calor que costuma estar”, dizem-nos. Alguns animais vão acusando o nervoso; outros parecem nascidos para isto, como os cães do ganadeiro, mui temidos pelos bois. “Deitam um boi ao chão num abrir e fechar de olhos.”
Entretanto, já subimos em todo-o-terreno até ao talefe (marco geodésico), já voltámos a descer, já fomos quase até à entrada da aldeia — onde por um momento se temeu que a manada entrasse sem guarida —, já voltámos ao ponto inicial. Até que, por fim, uma nuvem de pó anuncia o que todos esperam: os cavaleiros e os homens que correm de cajado na mão conseguiram encaminhar os bois até ao caminho pré-destinado e vêm agora na nossa direcção para depois subirem ao talefe. O nosso condutor adianta-se e voa colina acima até nos deixar frente a frente com a imponente manada. Depois, é voar colina abaixo, cortando caminho, para chegar à entrada da aldeia antes da comitiva que acompanha os animais, estacionar o jipe e correr. Sem olhar para trás.
Não seria apenas na Lageosa que os bois brincariam com quem queria brincar com eles. No dia a seguir, na Rebolosa, o cenário repetir-se-ia. De tal maneira que, para escapar à fúria dos animais, o fotojornalista da Fugas ver-se-ia forçado a trepar com a máquina a tiracolo para cima de um tractor que acabaria por levá-lo a reboque e aos solavancos pelo lameiro. Já pela praça — no caso da Rebolosa, foi construída uma arena fora do perímetro da aldeia —, muitos aguardam impacientemente a chegada dos bois. E com vários cuidados extra. É que a memória do ano em que encerraram os bois e se esqueceram de fechar a porta ainda está muito viva: “Eles entraram, deram a volta à praça e voltaram a sair por onde vinha toda a gente a entrar. Foi um salve-se quem puder. E nem sei como não houve desgraça maior”, contam-nos com um misto de euforia e de alívio.
O sol já está a pique e bois nem vê-los. De prevenção, um camião estacionado trouxe alguns animais directamente da ganadaria para que não se fique sem capeia. “Mas não é a mesma coisa e ninguém quer começar uma capeia sem pelo menos conseguir encerrar um boi.” Por isso mesmo, a espera continua. E, ao fim de dois ou três alarmes falsos, eis que surgem os imponentes bichos no corredor que lhes fora destinado. Aqui, há que dar a mão à palmatória. Não se percebe muito bem porquê, mas parece impossível ficar-se indiferente perante o explodir da alegria da assistência. E a entrada, no caso de apenas um boi e de uma mão-cheia de cabrestos, gera uma onda de comoção.
Histórias de cornos e capeias
“Aqui para haver festa basta haver cornos… e minis”, explica, entre risos, Fernando Lopes, um fervoroso adepto da capeia arraiana e professor de Filosofia com largas horas dedicadas ao estudo daquela prática. Pelos andaimes a improvisarem uma plateia circular à volta da praça central da Lageosa, vê-se gentes de todas as idades e géneros. “Está-nos no sangue”, desabafa José Ramos, 44 anos e natural de Lisboa, embora prefira dizer ser natural da aldeia: “Só fui a Lisboa nascer”. Por isso, confessa passar “um ano inteiro a pensar nestes dias.” Quem parece concordar consigo é o filho de 11 anos que, ainda antes de o pai se levantar, já está pronto à sua espera.