Há luta no Cais
Há vinte anos a gerência do Jamaica endereçou uma carta ao senhorio do prédio para denunciar uma infiltração. Até hoje não obteve resposta. Este sinal é evocado por Fernando Pereira, sócio-gerente da discoteca, para contextualizar a intervenção da Câmara Municipal após o colapso parcial do segundo andar. As obras de beneficiação ganharam o carácter de "estado de emergência" no início de Maio. Face à inércia dos proprietários, a Câmara Municipal tomou então posse administrativa do prédio por "incumprimentos sucessivos" dos proprietários, seguindo-se as obras de consolidação da estrutura do edifício, uma intervenção paga pelos arrendatários.
Em Agosto, sem certezas sobre o termo das obras, os gerentes dos três bares endereçaram um abaixo-assinado ao presidente da Câmara, no qual exigiam uma data definitiva para a reabertura das três casas. "Estávamos a chegar a uma situação limite", recorda o empresário. Estavam em causa vinte postos de trabalho nas três discotecas, impostos e salários a serem pagos sem garantias, sem datas à vista. A pressão resultou. A vistoria aos estabelecimentos ficou agendada para 19 de Setembro e a reabertura para 20.
Outro abaixo-assinado, desta feita de mais de vinte comerciantes da Rua Nova do Carvalho, seguiu para a Câmara. No documento era solicitada a interdição da rua à circulação automóvel. José Sá Fernandes, responsável pelo Ambiente e Espaço Público, e os comerciantes da zona selaram um acordo ao encontro desta proposta, que inclui ainda a possibilidade de introdução de esplanadas. A artéria entre a Travessas dos Remolares e a Rua de São Paulo passará a ser exclusivamente pedonal e ciclável a partir de quarta-feira, véspera do Dia Europeu Sem Carros.
É uma pequena grande revolução no Cais do Sodré, histórico e pitoresco "bairro" onde conviveram durante anos prostituição de rua, boémia, intelectuais e marinheiros, e no qual o assassino de Luther King, foragido, se apaixonou por uma prostituta portuguesa em Maio de 1968.
Mas a mudança já se vinha a sentir, com a chegada de novos públicos e com a abertura de novos espaços como a loja e bar de conservas Sol & Pesca, o Bar do Cais, a renovada disco Roterdão ou a Taberna Tosca, além de outros a serem reabilitados (o antigo Arizona vai reabrir como casa diurna de petiscos). Todos a conviverem, lado a lado, com bares míticos de strip tease ou de salas de espectáculos (como o MusicBox, antigo Texas) e casas de sempre. Agora, é tempo da “reabilitação”, que, para Fernando Pereira, surge "na perspectiva daquilo que se pretende para a zona. Não queremos que seja só um espaço de divertimento nocturno, mas uma zona onde abram outros espaços, galerias, mercearias, [onde haja] gente a viver".
António Veiga, gerente do bar Liverpool há 13 anos, e a trabalhar há 36 no Cais do Sodré diz que a "fama" da violência e da criminalidade naquela rua são "uma fantasia". Mete-se a estação do Cais do Sodré, o Largo de São Paulo ou Corpo Santo e aquela rua no mesmo saco sem cabimento, lamenta Veiga. O empresário está a favor do fecho da rua ao trânsito, porque, alega, contribui para a segurança dos clientes e da zona. Fernando Pereira afina pelo mesmo diapasão. Agrada-lhe a ideia de "rua livre, [para se] beber copo e falar". Como no Bairro Alto? Sim, mas com menos "garrafas no chão e confusão".