Sesimbra: Ribamar
Um mergulho no mar pela mão de Hélder e Rita
O Ribamar de Sesimbra está a celebrar o seu 65.º aniversário. Não são muitos os restaurantes que se mantêm 65 anos na mesma família, mas este pode orgulhar-se de ir já na terceira geração: António e Cremilde Chagas, Hélder e agora a filha deste, Rita. E uma história que é também a de Sesimbra e do excelente peixe e marisco desta costa.
Passaram já 65 anos desde a altura em que Hélder Chagas, com meses de vida, dormia dentro de um “caixotinho de Vinho do Porto a fazer de berço” no Café Ribamar, aberto em Sesimbra pelos seus pais, António e Cremilde, no ano em que ele nasceu, 1950. Muito aconteceu na vida deste hoje histórico restaurante de peixe e marisco, cuja cozinha é garantida por Hélder e pela filha Rita. É uma longa história, que é também, em parte, a história da Sesimbra das últimas décadas, e que os dois contaram à Fugas durante um almoço recente, num dia de semana já quente, com os primeiros veraneantes a aproveitarem a praia, ali mesmo ao lado.
Tínhamos estado no Ribamar umas semanas antes para o almoço de aniversário que foi um impressionante desfile daquilo que Hélder e Rita descreveram como “alguns dos muitos prazeres marinhos da nossa querida costa”. Houve — atenção que a lista é longa — amêijoas, ostras e pés-de-burro, ouriços-do-mar, navalhas, mexilhões e carabineiros, caramujos e percebes, navalheiras e lagostins da pedra, tártaro de lagostim, caranguejo de casca mole com molho de abacate e lima, anémona frita, ova de choco, saladinhas de polvo e chocos, abrótea com creme de ouriços, salmonete com manteiga dos fígados, preguinho de espada, robalo com creme de lagostins e, para terminar, a deliciosa sopa rica de peixes e mariscos.
Mas nesse dia de festa pai e filha tinham que garantir que tudo corria bem na cozinha e por isso o tempo para conversar era pouco. Por isso voltámos para ouvir Hélder contar como tudo começou. “De dia ficava no caixotinho e à noite a minha mãe ia pôr-me a casa dos meus avós maternos. A minha avó tinha um fogão a lenha com dois metros de comprido e dois fornos, a chaminé parecia daquelas alentejanas, enormes, e ela passava o dia inteiro na cozinha a fazer comida para os cinco filhos e quem mais aparecesse, porque em tempos difíceis panela que vai ao lume para 10 vai para 15.”
Como não podia brincar na rua, Hélder ficava a ver a avó cozinhar. “Às vezes ajudava, outras ficava a brincar a fazer ‘comerinhos’, que era como a gente lhes chamava, umas salganhadas que não sabiam a nada, mas serviu para durante a minha vida agarrar-me a isso lembrando-me de coisas que via a minha avó fazer.” Foi dessas memórias que vieram receitas que ainda se podem provar no Ribamar, como o safio ou o peixe-espada guisado com ervilhas — “uma coisa fabulosa!”.
Antigamente, recorda, usava-se muito em Sesimbra o peixe-espada branco, que havia em abundância (agora continua a existir, mas o preto). “Qualquer barcazita saía da doca e em duas horas de caminho ficava carregada de peixe-espada branco”, conta Hélder. “Agora é impensável, o peixe-espada branco que aparece aí no mercado é capturado ao largo da Mauritânia.”
E o que fez desaparecer este e outros peixes grandes que aqui existiam? “Houve, em determinados anos, uma captura desenfreada de algas. Aquilo dava dinheiro e os barcos, que no ano inteiro andavam à pesca, chegavam ao Verão e tinham aqueles meses de captura de algas. Raparam o fundo do mar todo e os peixes pequeninos, os camarõezinhos, toda essa bicharada começou a desaparecer e os peixes grandes que se alimentavam deles mudaram-se para outras zonas.”
Foi o que aconteceu também com o espadarte, outro peixe pelo qual Sesimbra era famosa. “O dono do Hotel Espadarte tinha uma traineira para levar os nórdicos, que vinham aqui passar férias em Setembro e Outubro de propósito para pescar espadarte. Na ‘forca’ em frente ao hotel todos os dias estavam pendurados peixes com 89, 90, 100 quilos.” Mas, depois de piorarem, as coisas começaram novamente a melhorar, e algum peixe está a voltar. Quanto ao marisco, Hélder e Rita continuam a arranjá-lo de qualidade sem problemas.
Mas voltemos à história do Ribamar, enquanto Rita zela para que desta vez provemos coisas diferentes — sushi (que começaram a fazer para o espaço mais descontraído que entretanto abriram ao lado do restaurante, o Ribas, mas que pode comer-se também no Ribamar), sardinhas assadas servidas em cima de fatias de pão e peixe no forno. “Comecei a ajudar o meu pai mais a sério quando tinha 12, 14 anos”, recorda Hélder. “Saía da escola e ele obrigava-me a ficar atrás do balcão a lavar chávenas de café e a servir imperiais.” O Hélder adolescente, que via os colegas irem jogar futebol para a praia, detestava aquilo, claro.
Só que, entretanto, o Ribamar já se tinha transformado numa referência na terra. Ao princípio era só um café de ambiente simpático, onde “ia desde o doutor do registo civil ou o presidente da Câmara aos pescadores à tarde, quando chegavam do mar”. Mas António Chagas era um homem de inovações. “Com 19, 20 anos, o meu pai saiu de Sesimbra, chateou-se desta vida e foi para Lisboa. E onde é que foi parar? À Ginginha de São Roque. Conheceu as inovações da capital e foi ele quem trouxe para Sesimbra a primeira jukebox, a tiragem de cerveja a copo, os primeiros gelados, que ainda eram da Rajá, a primeira televisão num estabelecimento comercial.”
Além disso, a boa relação com os pescadores fazia com que eles trouxessem do mar “as lulinhas, os choquinhos pequenos, que eram para a ‘tia Cremilde’ fazer”. Tudo começou com os petiscos, “uns choquinhos à pé descalço, umas lulinhas ao alhinho”, e ao fim de poucos anos havia restaurante. “Depois nunca mais parou.”
Hélder é que ainda não estava convencido de que esta seria a sua vida, mas com a saída de outro funcionário foi chamado para a sala. “O meu pai pensou ‘o Helderzinho tem 16 anos, fala inglês, fala francês, veste casaquinho azul e papillon e vai para a sala tirar pedidos.” Foi contrariado. Mas o ano revelou-se excepcionalmente bom, com os turistas a pagarem garrafas de vinho de sete escudos com notas de dez e a deixarem o resto para o Hélder. “Nunca ganhei tanto dinheiro proporcionalmente na minha vida. Tirei a carta, comprei um carro, e mentalizei-me: isto é capaz de dar uns tostões.” Assumiu o restaurante, mudou-o do Largo da Fortaleza para a Avenida dos Náufragos e fez dois estágios em Genebra, onde aprendeu muita coisa nova.
Mas a história já vai longa e ainda não falámos de Rita. Temos que a imaginar pequena, uns seis ou sete anos, e “difícil para comer”, como ela própria se descreve. Por isso, ia para a cozinha e fazia o seu próprio almoço: uma magnífica salada, que levava tudo o que conseguia encontrar e que despertava a atenção dos clientes, que pediam “também posso comer aquilo?”. O problema, conta o pai, “é que ninguém sabia fazer a salada como ela e por isso várias vezes teve que ser requisitada para a vir fazer.”
Estava aí, se calhar, já o sinal de que a Rita herdaria a cozinha do Ribamar. Mas, modesta, diz que tudo o que aprendeu foi com o pai, e se nos últimos anos surgiram muitos pratos novos, a “imaginação e a criatividade” são de ambos — e, mais do que isso, são da forma como trabalham como dupla. Desde há cinco anos que Rita está mais em Sesimbra e Hélder à frente do segundo Ribamar, que abriu em Tróia. Mas o pai nunca se afasta muito daqui, apesar de Rita (que entretanto chamou a mãe para a ajudar na cozinha) confessar que tem saudades da altura em que ele estava a 100%.
Ao mesmo tempo, e para sorte dos lisboetas que não vão habitualmente a Sesimbra, todos os anos o Ribamar está presente no festival Peixe em Lisboa, em Abril — e causa grande entusiasmo com os petiscos que ali apresenta, dos ouriços-do-mar, que nessa altura estão no seu melhor, aos caranguejos de casca-mole com molho de abacate e lima, passando pelas ovas de choco. É também a altura de mostrar a cozinha mais imaginativa e ousada do Ribamar — uma cozinha que, lamentam ambos, ainda passa ao lado de muitos clientes do restaurante. “Alguns desses pratos, se os pusermos na ementa, não vendem”, diz Rita. “A maioria das pessoas querem peixe grelhado, arroz de marisco, caldeirada e pouco mais.”
Fazem mal, dizemos nós, ainda com o almoço de aniversário na memória. Passar ao lado de uma anémona frita, de umas ovas de choco, de um salmonete com manteiga dos fígados, de um extraordinário preguinho de espada, de um robalo com creme de lagostins, ou de uma sopa rica, inspirada na bouillabaisse marselhesa? Deixamos um conselho: mesmo que estes (e outros) pratos não estejam na carta, podem sempre ligar à Rita e ao Hélder e pedir: “Preparam-nos aí alguma coisa especial? Não queremos escolher, ficamos nas vossas mãos”. E ficam muito bem. (Alexandra Prado Coelho)