“Há quantos anos conhecia este bar? Há quantos anos se sentava ao balcão do Bonaparte, a horas desiguais da noite, depois do crepúsculo, diante do mar da Foz? Há quantos anos conhecia Jorge Alonso, o dono do bar? Quantas vezes Alonso o amparou até à porta e, com o braço estendido, lhe mostrou o lugar onde estacionara o carro, junto do separador relvado a meio da Rua do Brasil?” As perguntas são dirigidas a Jaime Ramos, detective, nascido e criado no Porto, pelo menos na cabeça de Francisco José Viegas, que escreveu estas linhas no livro Longe de Manaus, de 2005. Anos antes, Jaime Ramos já teria sido chamado ao bar do amigo Jorge Alonso para desvendar o crime da morte de um jogador de futebol assassinado no pub irlandês. O bar é frequentado pelo detective, no livro Morte no Estádio, de 1991, e em toda a saga idealizada por Viegas. É o Bonaparte na Foz, virado para o mar, que está no 130 da Avenida Brasil desde 1977 e serviu de inspiração para o autor.
É dia da semana. Ainda não são 22h quando contornamos os separadores das obras em curso no passeio da avenida para chegar à porta do “Bona”. Costuma estar lá uma esplanada, agora guardada até que o cimento do passeio volte a ganhar a firmeza suficiente para aguentar o peso das mesas. Lá dentro, no piso de baixo, frente a frente, nas mesas que mais parecem cabines de uma locomotiva, há grupos que entre cervejas trocam dois dedos de conversa. Um pequeno caracol de degraus leva-nos ao piso de cima, onde durante anos também se serviam jantares a artistas, políticos, jornalistas, gente do futebol e à vizinhança do “bairro”, composta também por estrangeiros que trabalhavam no Porto.
Hoje já não se servem jantares. É agora a continuação do bar decorado com antiguidades coleccionadas por Klaus Teichgräber, que criou o espaço. Sim, Klaus é Jorge Alonso, confidente de Jaime Ramos, do bar onde o futebolista de Viegas foi encontrado morto. As luzes estão baixas, mas não sombrias ao nível dos contornos sórdidos da ficção. Tem o ambiente ideal para “se estar”, diz Pedro Teichgräber, que com a irmã Cláudia Teichgräber está “à frente” do bar desde que o pai faleceu, em 2013.
“É uma herança pesada” preservar a identidade de um espaço que se cruzou com a história da cidade e do país no último quarto do século XX. “Muita coisa se decidiu dentro do Bonaparte”, diz Pedro, que nasceu dois anos depois do bar abrir. Não tem memórias dessa altura, mas ficou com as que o pai lhe passou: “A classe política vinha cá regularmente. O Sá Carneiro e outros fundadores do PSD ou membros de outros partidos reuniam-se nas nossas mesas”.
Continua a ser um espaço frequentado pelos mesmos públicos, mas que pertencem a uma “geração mais fresca e menos pesada”, alguns de segundas ou terceiras gerações dos clientes “originais”. “Quanto menos mexermos melhor, senão estraga-se”, é assim que justifica a longevidade do pub.
Cave feita de poesia
É segunda-feira de uma outra semana. Corremos para fugir da chuva sem patinar no paralelo do Porto velho de Miragaia para chegar ao Pinguim. São quase onze da noite em dia de descer à cave. Há poesia, neste dia e desde há 30 anos. Começa impreterivelmente às horas que Rui Spranger quiser, ali entre as 23h e as 23h30. O actor continua o legado iniciado por Joaquim Castro Caldas (1956-2008), poeta e crítico literário, que pediu a cave do Pinguim emprestada ao primeiro dono, Luís Carlos, para começar as noites de poesia, que desde essa altura acontecem religiosamente todas as semanas.