Há um feixe de luz apontado para Spranger. “Bom, diz ele. Dia!, diz ela. Vamos?, diz ele. Não!, diz ela. Que há?, diz ele. Nada!, diz ela. Então, diz ele. Adeus!, diz ela”, poema de Alexandre O’Neill dito pelo actor que dá início à noite que conduz para cerca de três dezenas de pessoas que até à 1h também vão participando.
Os poemas ditos de Cesariny, António Gedeão, Manuel António Pina, Rui Zink, Bocage e Adília Lopes, estes últimos a arrancarem algumas gargalhadas, são intercalados pela guitarra e voz de Rui David, que forma parelha com Spranger. “Era uma casa muito engraçada, novinha em folha, bela empreitada, o banco empresta, sem garantia, corria bem, até que um dia... O infortúnio, o desemprego, batem à porta, casa no prego. Na economia, um trambolhão, manda as empresas, para o Paquistão” — poema cantado, acompanhado por alguns presentes que conhecem o original que conta a história da “bolha da especulação que rebentaria na nossa mão”.
A subir e a descer as escadas está Manuel Sena Esteves. É o Manuel, o mesmo que, desde que o bar abriu, em 1987, no número 65 da Rua de Belomonte, já o fazia quando Castro Caldas tomava conta destas noites. Tinha 16 anos quando lá começou a trabalhar, mas já conhecia a casa antes mesmo de abrir, em 1985/1986, quando o Pinguim já se constituía mas ainda não tinha as portas abertas. Um dia, quando desceu à cave “para levar umas bebidas”, estava a sala “à pinha” com “o Joaquim (Castro Caldas) a dizer um poema deitado no chão”. De repente, fez-se silêncio, conta, e há uma pausa dramática: “Quando olhei, estava a dormir ferrado no chão. Dei-lhe um toque com o calcanhar. Acordou e continuou o poema exactamente do mesmo sítio onde tinha parado. Ninguém reparou.” Histórias como estas diz ter muitas. Não está há 30 anos seguidos no bar — entre 1997 e 2013 esteve “noutras andanças” — mas diz conhecer até “algumas manchas que estão nas mesas”. Mesas de pedra e ferro, que estão lá desde o início, “sólidas como os clientes do Pinguim”.
As noites de poesia nem sempre foram à segunda-feira. Quando Paulo Pires, o terceiro e actual dono, se tornou proprietário do bar, em 1999, passou-as para as quartas e depois para as quintas. Numa fase em que Castro Caldas adoeceu foram outros que o foram substituindo. Passou por lá Pedro Lamares, Cristina Bacelar e Rui Spranger, que até hoje é o anfitrião. Em 2008, quando Castro Caldas faleceu, em jeito de homenagem devolveu-as às segundas-feiras.
Fora da cave, o bar também está cheio. Há várias gerações. Paulo, que mesmo antes de passar da Gesto, bar de que era dono, para o Pinguim já frequentava o espaço, diz-nos que “sempre houve muita gente da comunidade artística dentro dos clientes regulares”. Nesse aspecto pouco se alterou: “Na sua essência continua tudo muito parecido ao que era dantes.” É assim que querem continuar, “fiéis às raízes”, como bar que privilegia o contacto com os clientes. “É por isso que não temos lista. Quem cá vem é obrigado a falar connosco”, diz Paulo, que admite gostar de conversar. A maior prova que lhe foi dada de que mantém o mesmo espírito aconteceu há pouco tempo. “O Luís e a Fernanda (fundadores), desde que de cá saíram, nunca mais cá voltaram”, conta. “Diziam que não conseguiam.” Partilha connosco que, recentemente, Luís apareceu por lá um dia: “Antes de ir embora falou comigo e disse-me que o bar ainda cheirava ao Pinguim dos tempos dele.”