Fugas - Viagens

Enric Vives-Rubio

Pelos caminhos da guerra civil e da memória histórica

Por Carlos Pessoa

Há uma Estremadura espanhola que escapa aos clichés turísticos e não aparece nos guias. São as cidades e as serras, os campos e os vales onde a guerra civil foi travada e deixou sinais e testemunhos, quase todos em acentuado estado de degradação. Contam uma história e registam uma memória.

A curta viagem, por um caminho de terra batida em bom estado, termina na quinta, onde não há vivalma. Pablo Caballero é o primeiro a sair do carro e segue com passo firme até à cancela. Abre-a e passa, continuando a andar sem se preocupar se é seguido. O terreno despido de vegetação, com sinais de ter sido pisado por animais e máquinas, estende-se por mais algumas dezenas de metros, até terminar num declive acentuado que morre no fundo do vale. Mas antes de chegar ao fim do seu caminho, o velho homem de 72 anos pára e vira-se, apontando para o chão. "Foi aqui que mataram o meu pai", limita-se a dizer sem mágoa aparente.

A quinta onde nos encontramos, a pouca distância da aldeia de Valle de La Serena, na região estremenha de La Serena, foi o palco de uma tragédia, em Setembro de 1938: nove homens e uma mulher foram retirados da prisão da aldeia e levados até ali, onde os executaram e enterraram. Um deles era o pai de Pablo, então com 10 anos de idade.

Para os habitantes de Valle de La Serena, a guerra civil tinha acabado há poucos dias, quando a ofensiva franquista nesta área da Estremadura espanhola levou à sua frente o exército republicano em retirada. Mas o pior ainda estava para vir, pois os falangistas empreenderam de imediato uma repressão implacável sobre os seus inimigos. Qual foi o crime destes homens - serem republicanos, socialistas ou comunistas? Terem-se oposto ao pronunciamento militar de 18 de Julho de 1936? Combaterem de armas na mão as tropas franquistas nas trincheiras erguidas a pouca distância da aldeia? Pablo Caballero encolhe os ombros e limita-se a dizer: "Mataram-no por nada. O meu pai não era republicano, estava sempre a trabalhar..." E lembra-se, claro, dos tempos difíceis que se seguiram ao fim da guerra, quando houve muita repressão, medo e fome, e cada um ganhava a vida como podia, trabalhando nos campos ou no que aparecia.

Assim se passaram os 40 anos seguintes até que, em 1979, na fase de transição para a democracia, a aldeia decidiu recuperar os corpos dos seus mortos, muito tempo antes de a sociedade civil espanhola ter desencadeado o actual movimento de recuperação da memória histórica. "Pablo Caballero andou de casa em casa mobilizando os vecinos para exumarem os corpos", diz Antonio López, historiador e membro da Associação Memorial Campo de Concentración de Castuera, nosso guia nesta viagem. Foram todos enterrados juntos sem identificação científica, mas Caballero reconheceu os restos mortais do seu pai. As marcas da dor causada por esse fim violento não desapareceram, mas talvez o gesto de 1979 tenha facilitado o acerto de contas com o passado que faz de Pablo Caballero, hoje, um homem sereno e apaziguado quando conta o que viveu. As vítimas da repressão franquista daqueles anos na aldeia estão no jazigo memorial construído à entrada do cemitério da aldeia.


Vestígios do conflito

Na paisagem estremenha, há outros monumentos, mais antigos, que assinalam o conflito sangrento que devastou a sociedade espanhola nos anos de 1936-1939. Os vestígios físicos da guerra civil continuam a resistir à passagem do tempo, mas evidenciam uma acentuada degradação com que ninguém parece importar-se. Os bunkers, casamatas, refúgios antibombas e postos de observação espalhados pelo território são testemunhos solitários do esforço de guerra dos dois lados beligerantes. Foram construídos em inúmeros lugares onde tropas franquistas e milicianos republicanos se enfrentaram duramente e, por vezes, tiveram de coexistir durante meses numa linha de frente mais ou menos estabilizada. A guerra acabou há muito e perderam a importância fugaz que tiveram. Esquecidos de quase todos, só não desapareceram porque a sua demolição dava muito trabalho e custava demasiado dinheiro. Recuperá-los é coisa em que ninguém pensa e nem sequer são considerados monumentos militares pelo Ministério da Defesa espanhol.

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