Antes, porém, temos direito a passagem panorâmica pela costa nordeste das Flores: ilhéus da Alagoa, de Álvaro Rodrigues (chegou a ter plantações de milho e exibe uma nascente natural) e Furado; Fajã da Ponta Ruiva, que ontem víramos de cima; as grutas da Catedral (imensa, com um eco extraordinário, daí o nome) e do Galo - a rocha é cortada, o sol incide na água e deixa à vista um pedaço de mar turquesa forte, tão cristalino quanto difícil de definir; a réplica marítima da Rocha dos Bordões, ex-líbris das Flores que (ainda) não lográmos ver em terra - um acidente geológico que se caracteriza pela solidificação da rocha basáltica em altas colunas prismáticas verticais.
Carlos conduz o barco para os recantos que se impõem e vai dando algumas dicas para olhos menos atentos. As hortênsias na escarpa, por exemplo, o pormenor da estratificação das rochas, o garajau comum que parece posar para as fotografias. (A propósito, ontem à noite ouvimos pela primeira vez o canto perturbador dos cagarros.)
A esta altura, navegamos devagarinho, quase ao sabor das (poucas) ondas. Mas entretanto Carlos distribui uns casacos amarelos impermeáveis, avisa que é possível que nos molhemos e que vamos começar a viagem a sério rumo ao Corvo.
Tinha razão: dali a pouco, alguns dos passageiros estão encharcados mas ninguém parece importar-se com isso. Meia hora depois, terra à vista - mas nem sombras do Caldeirão, que está devidamente emoldurado pelas nuvens do costume. A caminhada e posterior piquenique na cratera do antigo vulcão não passa de uma miragem neste momento.
Vista daqui, a vila do Corvo é um amontoado de casas brancas num canto da ilha. O resto é o vazio. Não há mais vazio do que isto, quer-nos parecer - e isso, para nós que vimos de visita, é simplesmente magnético. Raul Brandão também achou: "O Corvo tem alguma coisa de monástico, de convento erguido no meio do mar."
Aportamos às 10h55 e as indicações de Carlos são estas: "Se o Caldeirão abrir, saímos de volta às 16h00; se não abrir, saímos às 14h00."
O Corvo tem casas empoleiradas umas nas outras, ruelas apertadas -e não parece ter gente. Pudera: os Censos deste ano informaram que vivem na ilha de 6,5 quilómetros de comprimento por quatro de largura 430 pessoas. Ou seja, pensamos agora que vamos passeando na rua, os corvinos têm muito por onde se esconder.
Tantos anos depois - a viagem que resultou no livro As ilhas desconhecidas teve lugar em 1924 -, Raul Brandão ainda parece ter razão. No Corvo "acabam as palavras" e o mundo que conhecemos. "Neste tremendo isolamento", a "vida artificial está reduzido ao mínimo". Por exemplo: Lara, uma menina de uns dois, três anos no máximo, corta-nos os pensamentos. Vem a fugir da mãe, rindo - e percebemos pela conversa entre as duas que fez desaparecer "um saco com uma receita". Passa entretanto uma mulher carregada com maçãs verdes e diz bom dia - porque no Corvo quem passa na rua diz bom dia a quem encontra, e isto é a vida tal como ela é, simples.
Andamos mais uns minutos à deriva, com um gato enrolado nas pernas (chamamos-lhe Corvo, que apropriado), a tentar perceber verdadeiramente a que sabe o isolamento. A Paulo, por exemplo, um florentino que há 17 anos virou corvino, sabe bem. É de poucas falas, este funcionário "das obras públicas", e adivinhamos-lhe algum cansaço na temática. "Vim para cá e nunca mais saí. De vez em quando vou às Flores, mas não me custa nada viver aqui. Somos açorianos, já sabemos o que é viver longe de tudo, habituámo-nos e pronto." Pronto, não se fala mais nisso, Paulo. Já agora, agradecemos a boleia desde a estrada do Caldeirão, que no Corvo mandam regras como esta: quem encontra turistas a subir ou a descer pára e oferece ajuda. Para cima, fomos na caixa da furgoneta de Sandra, uma espanhola que há dois anos está na ilha a trabalhar num projecto de estudo e conservação das aves marinhas. O Corvo é, para quem não saiba, uma importante zona de observação de pássaros, sobretudo nos meses de Outubro e Novembro.