Embalados pela sorte, vamos em busca das que nos faltam no currículo. Correm as nuvens e corremos nós, a cruzar os dedos. Nada na Comprida, nada na Negra. Mudamos de lugar, sempre atrás dos prejuízos desta neblina que nos troca as voltas. Estamos há minutos à espera de poder ver uma nesga da lagoa Funda. Primeiro perdemo-la, por dez segundos. Pacientes, esperamos, que aqui aprendemos a esperar. E entretanto ela surge, uns metros apenas, que se escondem logo às mãos destas nuvens com vontade própria.
Estamos dentro de um jogo de paciência, que agora nos oferece um centímetro da Negra e um centímetro da Comprida. Andamos para trás e para a frente, ao sabor dos blocos de nevoeiro. De vez em quando, um ameaço de sol doura os campos molhados e renasce a nossa esperança. Marco, porém, conhece melhor do que ninguém estas "terras metidas nos vulcões" e chama-nos à realidade: por mais que esperemos hoje, não as veremos na plenitude que merecem. Resignemo-nos, então, a voltar para o continente com esta lacuna por preencher.
A não ser que...
A não ser que ainda não sejam 8h00 do último dia e que o telemóvel nos arranque do mundo dos sonhos - para nos levar para o mundo dos sonhos. "É o Marco. Está um dia magnífico. Se quiserem fazer um passeio antes voo, é pegar ou largar."
Pegámos, como é óbvio. Fomos subindo em direcção às lagoas debaixo de uma luz como nunca tínhamos visto a esta altitude. Já não era toldada, como nos outros dias, mas muito mais límpida - talvez a "poeira dourada" de que fala Raul Brandão. Ignoramos a entrada para a lagoa da Lomba, que ontem já tínhamos visto, e dirigimo-nos sem outras paragens para a Comprida. Uma súbita neblina ainda nos faz temer o pior, mas de repente fechamos os olhos e quando os abrimos lá está ela, completamente despida para nós.
O silêncio é enorme, deixamo-nos ficar num exercício de contemplação. Estamos a viver um momento quase solene, que interrompemos para avançar poucos metros a fim de conhecermos a vizinha lagoa Negra. É uma circunferência quase perfeita, rodeada de espécies endémicas por todos os lados: cedro do mato, louro, queiró. Tem mais de 100 metros de profundidade que, no entanto, não assustam devido à magia do cenário. Mais mágico do que isto só mesmo o que vemos em seguida, no varandim de um segundo miradouro. As duas lagoas, a Comprida e a Negra, praticamente lado a lado - ou, se preferirmos, de costas voltadas, numa sintonia descasada quase dramática. O sol incide sobre a Negra e deixa-nos ver-lhe melhor a tonalidade das águas. O momento é solene, já tínhamos dito - este canto da ilha é belíssimo, acrescentamos agora, sem receio de exageros.
Entramos no jipe com a alma cheia. E quando, em simultâneo, alcançamos com o olhar as lagoas Funda e Rasa, damos muito mais valor ao que está a acontecer. Era justificada a angústia dos últimos dias: não podíamos deixar as Flores sem levarmos connosco estas imagens de assombro e rendição. A lagoa Funda é de uma beleza extrema, quase trágica de tão verde. Por um rasgão nas nuvens, vê-se o mar lá ao fundo. Mas o impacto é muito maior, realmente, quando estão ambas no mesmo plano de visão.