Não é por acaso que a Bíblia situa o episódio do dilúvio nestas paragens. Este podia surgir quando menos se esperava. Aliás, o dilúvio era narrado em epopeias bem anteriores à do Velho Testamento. E envolviam deuses tão coléricos e imprevisíveis quanto as águas que os viram nascer. Os escritos antigos falam da criação da Humanidade por Deus. Sobre essa viagem não nos pronunciamos. Nesta, o que descortinamos são deuses inventados pela Humanidade à luz da Natureza que os acolhe.
Quem siga o curso do Eufrates dificilmente contém a irritação. Acabaram-se as árvores e os pântanos. Acabam-se até os pescadores. O rio desolado pertence aos patos onde as margens ainda apresentam linhas de canaviais. Ao longo das margens ainda existe agricultura. Mas as terras estão cobertas por finas camadas de sal... apesar dos mares se encontrarem a centenas de quilómetros. O Eufrates dos nossos dias é consequência de uma ideia de progresso refém das estreitezas nacionalistas que desdenha os equilíbrios ecológicos. A Turquia, e em seguida a Síria, julgaram-se no direito de resolver os seus problemas de electrificação à custa da penúria de água do Iraque. É assim que nascem as guerras. E é assim que a própria agricultura sela o seu destino.
ASSUÃO
No outro grande rio
Em Assuão, no Sul do Egipto, o Nilo é sulcado por falucas silenciosas, as barcas de vela latina que permitem navegar contra o vento. Por aqui, também o Nilo é a origem de todas as formas de vida. Se no Eufrates relatos antigos cantavam o dilúvio, também no Nilo a Humanidade amassada em barro precede os mitos da criação bíblica. Já se vê, nestes rios nasceram antes dos profetas, os fundamentos das religiões do Livro. Mas algo de essencial separa o Nilo dos rios mesopotâmicos: a sua previsibilidade. A garantia de que as cheias chegavam sempre entre Junho e Setembro fará toda a diferença.
Assuão é a principal cidade do Sul do Egipto. No centro, é um animado mercado a céu aberto. Nos arrabaldes, a cidade cresce de qualquer maneira. Apetece pensar que foi sempre assim, que esta é a história de todas as cidades do Nilo. Porque o Egipto é o país de um rio. Um país que se estende pelas suas margens, e que raramente delas saiu. Na Mesopotâmia, a violência do Tigre e do Eufrates fizeram precárias as cidades e difícil a formação dos impérios. No Egipto, pelo contrário, a regularidade das cheias unificou um país. O regime dos faraós durou quatro milénios...
O Templo de Philae
O Nilo, que um capricho da natureza fez percorrer 3200 quilómetros sem que o Sol o esgotasse, fez dos egípcios camponeses exímios. Em frente a Assuão, numa pequena aldeia que se fina contra as primeiras areias do deserto, ainda hoje os fellahs trabalham o regadio, recorrendo à tracção animal e a técnicas e saberes muito antigos. Nesta aldeia só uma parabólica dá notícia de uma dissonância. O que mudou foi a electrificação. E a dignidade que ela trouxe consigo. Esta é uma história recente, com 40 anos, mas que no Egipto parece digna dos feitos faraónicos.