Uma história de mil anos iria ser escrita com homens de Tera, mulheres líbias e meninos e meninas do Norte de África. O templo dedicado a Zeus ilustra a mistura. Os cirenaicos sentaram o seu deus no exacto lugar onde antes as populações locais adoravam o principal deus do Norte de África: Amon, o Deus Sol. Instalar a casa do novo deus no lugar do antigo obedece, de resto, à convicção entranhada de que há lugares mágicos mais propícios do que outros à vontade dos deuses. A atitude dos terianos não é novidade. A História regista, vezes sem conta, procedimentos similares. Deuses no lugar de deuses; igrejas no lugar de templos; mesquitas erguidas sobre pilares romanos ou cristãos e vice-versa. O Mediterrâneo serve-se em camadas sobrepostas.
No caso desta residência de Verão do deus grego, o tempo cansou-se. Zeus tem por companhia vacas, carneiros e cabras monteses, que gente é o que por ali não abunda. Os cultíssimos animais têm, aliás, a cidade por conta. Por isso, quem queira conhecer a Grécia antiga sem pressão do turismo, é a Cirene que se deve dirigir.
A jóia da cidade é uma plataforma artificial situada a meia encosta, com uma extraordinária vista para o mar. O espaço é marcado pela omnipresença de Apolo. Os romanos acabariam por profanar a sua natureza estritamente religiosa. O que marca a ruptura é a introdução de termas para uso público. A fonte deixou de ser um exclusivo dos sacerdotes... A mudança ilustra como, subtilmente, a cidade grega cede à cidade romana. A diferença é de filosofia. Para os primeiros, a Polis é, acima de tudo, uma comunidade de cidadãos da qual "apenas" estão excluídos os escravos. Já para os romanos, a cidade é uma ordem, um agrupamento assente sobre "um consentimento jurídico comum", para usar uma definição cara a Cícero. Num caso, falamos de autogoverno; no outro, de instituições jurídicas e políticas e de escala imperial.
Seja como for, o que nasce morre, e Cirene não foi excepção. Caiu ainda antes de se ter esvaído o império. Longe dos olhares, longe até das vacas e dos carneiros, um fantástico depósito de estátuas tem um apreciável número de Proserpinas. As últimas décadas de Cirene devem ter sido terríveis, portanto. Os sobreviventes encomendavam imagens da única deusa que lhes poderia trazer boas notícias: Perséfone, ou Proserpina, a deusa das colheitas.
Perséfone, a rainha do mundo de baixo
Um pouco por todo o Mediterrâneo é possível encontrar estátuas e bustos de uma mulher sem rosto. Elas representam Perséfone, filha de Zeus e Deméter, a deusa que representa o ciclo de germinação da Natureza. Diz o mito que Hades, o senhor das profundezas, raptou um dia Perséfone, depois de a atrair com uma flor de perfume inebriante. A mãe, Deméter, vagueou dias e dias à sua procura, sem sucesso, definhando progressivamente. Para evitar a sua morte, Zeus acabou por intervir, negociando um sábio desfecho para o rapto: durante uma parte do ano, Perséfone voltaria à superfície. Nos restantes meses, ela manter-se-ia nas profundezas. A figura sem cara é exactamente a que reina sobre o mundo de baixo. O lindíssimo rosto coberto por um véu, que encontrámos num armazém de estátuas em Cirene, na Líbia, é precisamente a Perséfone que sobe à superfície. Ela já tem, contudo, um outro nome, Proserpina. Porque data da era romana. Este mito foi ainda retomado na literatura por Schiller e Goethe, e em óperas de Monteverdi e Lully.