Fugas - Viagens

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Amesterdão, vista para um postal turístico

Cidade de viva cultura, mais de rua que de museus, mais de cafés e de conversas, de algum modo como Berlim, também uma cidade que impressiona pelo modo como de pouco parece fazer tanto. Não tira o fôlego mas não embaraça ninguém. E como o poderia fazer? É cidade rica, onde o dinheiro circula, apesar da crise, onde todos os dias abrem novos negócios porque aos 23 anos já se pode começar uma empresa, como conta Mary, que abriu um cabeleireiro em Leidsestraat, que cuida como se recebesse em casa. “Amesterdão pode ser muito acolhedora, mas o turismo invadiu tudo o que era calmo”, diz, enquanto maneja com precisão as tesouras na cabeça de uma cliente. Esperamos a nossa vez no conforto de uma decoração que foi feita a partir das memórias da própria cidade. Mary diz que os habitantes da cidade se encontram nas manhãs de sábado no passeio que se entende ao longo do canal, sob a égide de Spinoza, que ali nasceu, no mercado de Waterloopleinmarkt. “A cidade oferece-se completamente em todo o seu contraditório.”

Mary tem razão. Como em tantas cidades, é possível encontrar uma memorabilia desconfortável, que coloca ao lado de trastes que já ninguém quer outros objectos que ninguém deveria ter querido: símbolos militares da ofensiva alemã, máscaras de gás, águias em latão e bronze e, garantem, banho a ouro, sacos onde cunharam as siglas dos movimentos radicais, muitos casacos dos diferentes braços militares. Mas o que este mercado tem de especial, como terão, na verdade, todas as feiras da ladra, é a sua disposição que permite entradas e saídas das tendas improvisadas, como se fossem pequenas casas que resguardam as compras que se fazem. 

Há bancas que misturam tudo — livros, casacos, bibelots, sapatos — e depois há aquelas mais dedicadas, com cabides cuidados e espelhos onde podemos experimentar a roupa. “Fica-lhe muito bem. Estou a ver daqui”, diz-nos a dona quando escolhemos um casaco que só custa dez euros e “estava à [sua] espera”. Rosalind tem esta banca há trinta anos, os casacos vai-os encontrando ou muitas vezes há quem deixe ali o que já não quer. “Lavo-os, arranjo-os, puxo-lhes o brilho e nem uma manhã aqui ficam.” As regras de venda ambulante também estão a mudar. “Agora temos que ter licenças para tudo, até para receber os produtos que as pessoas já não querem. Achava que era esse o princípio da segunda mão”, arremata, enfiando o blazer no saco.

A história dos outros

Não muito longe do mercado fica a Sinagoga Portuguesa, uma das primeiras na Europa Ocidental e um milagre de sobrevivência da destruição a que a cidade foi sujeita durante a Segunda Guerra Mundial. Lá dentro conta-se a história das relações pessoais à margem das relações políticas. Porque no século XV a Holanda estava em guerra com Espanha, os judeus que haviam fugido para Amesterdão apelidaram-se de portugueses e criaram a maior, e mais resistente, comunidade judaica na Europa. Seguir a sua presença, ou a presença de diferentes comunidades numa cidade que parece acolher tudo e todos sem perguntar porquê, é encontrar elementos complementares de uma História que vive rarefeita, muitas vezes escondida ou fragmentada.

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