É muito fácil encontrar algum tipo de contorno romanesco numa prostituta que não deixa de se exibir enquanto fala connosco. Sobretudo quando parece estar com muito mais resistência do que o rapaz que acabara de sair da sua pequena casa, tão estreita que dificilmente mais de dois braços esticados poderiam medir a largura de uma casa onde, para além da cama, tem um lavatório e um pequeno móvel. “É maior lá atrás. Queres entrar?” Perguntamos se temos que pagar. “És tu que estás a trabalhar, querido.” Flora sabe, porque lhe dissemos, e pedimos, que estaríamos a gravar toda a conversa. Não se copia, nem se imita, nem se consegue recriar este ambiente. O bruáá das ruas, que a essa hora, já depois das duas da manhã, quase desaparece quando entramos. “É calmo, não é. Senta-te.” Sentamo-nos, a medo. Elas sabem sempre muito mais do que nós. Ter visto nessa noite, por coincidência, Belle du Jour, de Luis Buñuel, o filme em que uma enfadada e falsamente inocente Catherine Deneuve se descobre dona de casa de noite e prostituta para todos os fetiches de dia, ajuda a perceber que há em tudo o que naquele momento nos envolve uma dimensão extra-real. Flora tem tempo porque, revela, é das poucas que trabalha por conta própria. “Até a casa é minha”, diz. “Hoje isto está muito diferente. São mais os turistas que nos vêem ver, como se fôssemos macacas, do que aqueles que entram. Tive clientes fixos, homens que se divertiam comigo e eu com eles.” Flora faz sinal a um dos homens que passa na rua, que vê um rapaz sentado na cama, na ponta da cama, e a mulher de pé. Flora faz-lhe sinal e ele percebe que pode esperar. E saímos, agradecidos. O homem não nos olha de frente e a cortina é corrida. Lá dentro acende-se uma luz ténue que nos devolve à distância o que este falso e fascinante interdito nos sugere.
Amesterdão transformou-se, ao longo dos anos, num equívoco. “Visitam-nos pelas razões erradas”, diz-nos Clara, a guia do Stedeljik Museum (Roznstraat, 59) que, escondido na sombra do Hermitage, que entretanto exibe as obras de Van Gogh, guarda obras de Cézanne, Picasso ou Chagall mas que é um oásis para a criação contemporânea. “As pessoas chegam para cumprir rituais, para fazerem parte de uma movida que é construída pela imprensa, nem se preocupam em olhar para o que se esconde atrás dessa folia.”
Novamente os versos de Brel enquanto procuramos pelo bêbado que, disseram-nos, corre nu no Vondelpark, batida a meia-noite: “No porto de Amesterdão há um marinheiro que morre, cheio de cerveja, cheio de choro, de uma rixa numa cidade bêbeda.” Não sabemos se os risos que ouvimos, vindos do fundo do parque, são desse homem. Sabemos que a voz que procuramos ressoa à versão que Scott Walker fez da canção em 1967, como se anunciasse todas as esperanças. Há uma rapariga que corre à frente de um rapaz, que finge querer apanhá-la. Há um grupo de homens que se esconde debaixo de uns cobertores em cima do cimento, porque a relva está molhada da chuva. Ouvem-se patos que saem da água que já começa a congelar. Mas não se vê o homem.