Anne Frank foi capturada em 1944 e morreu aos 15 anos. Dois anos antes, a família escondera-se numa casa com vista para o canal e foi aí que Anne, que queria ser jornalista, deixou um diário onde contava o que via, ouvia e imaginava enquanto lá fora o exército nazi, que ocupava a cidade, avançava, com a cumplicidade de muitos judeus holandeses (em 2006 Paul Verhoeven realizou The Black Book que retrata, tão assustadora quanto fielmente possível, esse período que os holandeses querem esquecer). “Não sabia”, diz Margareta, prestes a entrar, depois de três horas de espera. A casa tem mais de meio milhão de visitantes por ano. Quase todos tiram fotografias à porta de uma casa que se tornou rosto-mártir de uma perseguição sem piedade. Quase todos sorriem. Como se pode sorrir em frente a esta porta?
Emmanuel, padre na igreja que fica ao lado, e onde descansam muitos dos visitantes, diz que já ninguém visita a casa pelo que ela é “mas pelo que ela se transformou”: “Um postal turístico.” Numa cesta à porta há um conjunto de panfletos que explicam a história daquela casa e a importância de gestos como os de Anne Frank não poderem cair no “fetichismo”, palavras do padre, “de quem vem fazer turismo com a miséria dos outros”. Ninguém os leva. Uma placa à porta da casa, anunciando o tempo de espera, faz também um pedido: “O tempo de espera pode ser um tempo de reflexão.” O que sentiu, perguntamos ao grupo sueco. Uma delas chora, Annabel. “Era tão pequeno atrás do armário onde estavam.” E não diz mais nada. E depois é puxada pelas amigas.
Próxima paragem, a fila de espera da Abercrombie & Fitch, a marca de roupa americana que recebe, sem problemas de fetichismo mas a pedir outro tipo de reflexão, as mesmas adolescentes com rapazes de abdominais cinzelados que posam, a troco de beijos, para as objectivas dos telemóveis. Numa e noutra fila, os mesmos risos, as mesmas gargalhadas, os mesmos dedos em V e as mesmas línguas de fora.
Luxo, luxúria, culpa, prazer, dor. Vive assim a cidade. Claro que Brel surge, em notas roufenhas saídas de um acordeão escondido no nevoeiro que já comeu os canais. Só não temos a letra da música mas sabemos o que diz quando nos damos conta — porque andamos tanto que nos esquecemos que Amesterdão é do tamanho da palma da mão — que chegamos a Rosse Buurt, o Bairro Vermelho, ou num inglês que ninguém se preocupa em traduzir o Red Light District. O marinheiro, cantava Brel, brindava “à saúde das putas de Amesterdão, que deram os seus corpos a centenas de outros homens” e que “desbarataram a sua virtude, todo o bem que traziam, por um punhado de moedas sujas”.
Flora tem 52 anos, há mais de trinta que ali está, na Damstraat, uma das ruas a sul, já quase a fechar, na mesma casa onde por cima existe um infantário. Usa uma lingerie que lhe desaparece por entre carnes, deixando apenas a luz reflectora, daquelas que brilham no escuro, indicar que ainda guarda alguma roupa. “Pudor, claro que tenho pudor. É um trabalho, não é prazer. Não é só prazer.” Flora atraiu-nos e nem sabemos se é o seu nome verdadeiro. Flora, diz ela, porque decorou a colcha da cama com flores, iguais à que tatuou no cimo das costas quando ali chegou. A casa onde o fez já não existe. “Já não existe muito do que havia quando aqui cheguei.” Já nem as raparigas são, na sua maioria, holandesas.