À procura dos mitos
Felipe tem 23 anos, nasceu na Colômbia e desde Setembro que estuda clarinete em Amesterdão. Foi um dos mais de mil que concorreram às audições do Conservatório de Música, abertas em vários países. Diz que, entretanto, se apercebeu que “na Holanda interessa mais o modo como [se] convence quando [se] está a contar uma história”. “É como a hierarquia na estrada”, explica. “Há o eléctrico, a bicicleta, os automóveis e, depois, as pessoas. O eléctrico leva tudo à frente, a bicicleta finge que é dócil, os automóveis são olhados de lado e as pessoas são só peões. Tens que escolher que veículo queres ser.” Felipe conta-nos tudo isto enquanto seguimos empoleirados na traseira da sua bicicleta. Já dribla bem as curvas da estrada, conhece bem os atalhos e sabe como esquivar-se aos sinais. Enquanto conversa vai apontando para uma cidade onde, de facto, vista à velocidade das pedaladas, expõe a sua falsa organicidade. “Os canais são o que maior equívoco existe. São mínimos mas a sua estrutura labiríntica sugere que escondem mais do que aquilo que mostram.”
A rede de canais, ou os anéis que formam os canais, foram declarados Património da Humanidade em 2010. Apenas a parte central está protegida, e mesmo essa nem sempre da melhor forma. Há paraísos, como Bgijnhof, o melhor e mais antigo hofje (espécie de pátio) de Amesterdão, comunidade de jardins de tulipas reunidas por cores em torno de uma pequena igreja, a de Begijnenken, pertença das Beginen, uma comunidade de mulheres religiosas que não se queriam tornar freiras, constituída em 1346.
No interior, e apesar de terem visto ser transformada a igreja em armazém e depois em igreja inglesa, conserva painés de Piet Mondrian que parecem ser espelho da profusão de cores das flores que, mesmo no Inverno, resistem no jardim. Muitas dessas plantas vêm de perto, do Bloemenmarkt, uma feira a céu aberto onde o perfume das tulipas e dos lírios inebria quem passa. Mas esta paisagem viva, diz-nos Felipe, não é o melhor de Amesterdão. “Não é o seu verdadeiro mito.”
O melhor exemplo do mito de Amesterdão, perguntamos-lhe então. “Leste o Diário de Anne Frank?”, devolve-nos Felipe. Levar-nos-iam a mal se disséssemos que nunca tivemos o diário de Anne Frank na cabeceira enquanto crescíamos. Ficam indignados porque parece que incorremos num discurso anti-semita quando, na verdade, o que é embaraçoso são os sorrisos e os dedos em V com a língua de fora que os adolescentes tiram à porta do número 267 da Prinsengracht. As filas começam cedo e a espera faz estragos na relação que quem visita quer estabelecer com o que vai ver.
É uma espécie de fetiche o que ali leva as pessoas. Não somos nós que o dizemos. Margareta, vinda da Suécia, 25 anos, nunca leu o livro mas viu um filme. Não se lembra de qual. “Claro que tínhamos que vir aqui. É tão importante.” O quê, perguntamos. “Isto, ela, foi…” O quê, insistimos. “A memória dela.” Não leu o livro, viu um filme qualquer, como as amigas, Julia, Sonja, Annabel. “É a primeira vez que vimos a Amesterdão, sempre ouvimos falar da Anne Frank, do que fez… As raparigas da nossa idade… Ela não viveu tanto… Acho eu...” Com quantos anos morreu? “Não sei.”