Há que fugir do circuito dos postais ilustrados, sem, no entanto, deixar de mostrar como a cidade foi, efectivamente, um laboratório que cruzou convulsões políticas, sociais, religiosas e filosófias. As casas, entretanto tornadas museus, Willet Holthuysen (Herengracht, 605), Van Loon (Keizersgracht, 672) e Geelvink Hinlopen (Keizersgracht, 633) são exemplos que guardam o estilo do período em que foram concebidas, no século XVI, e sugerem um outro percurso pela cidade. Relativamente próximas umas das outras, mostram um fausto, uma ordem, e vários conflitos, até estéticos, que fizeram de Amesterdão uma cidade que, ainda hoje, precisa de viver atrás de uma lógica que imponha a sua visão do mundo ao próprio mundo.
2013 será ano da cidade. Quando visitámos Amesterdão, faltavam ainda algumas semanas para a abertura de um dos mais importantes monumentos à história da Holanda, o Rijksmuseum (entretanto inaugurado, após dez anos em obras), a par de um plano de renovação de fachadas das casas, de organização do trânsito, de novas regras para o consumo de álcool, de drogas livres, até para a comercialização de tulipas, diz-nos o vendedor do Museu das Tulipas (Prinsengracht, 116), enquanto nos ensaca um bolbo de Amarylis Benfica que promete “estar enorme, vivaça, florida” no dealbar da Primavera. Que a primeira grande crise económica tenha começado na Holanda, e por causa do aumento do preço da tulipa, parece uma memória distante. “A Holanda é um exemplo. Amesterdão é a sua melhor prova.”
Amesterdão vive destes mitos, ou de histórias que ninguém sabe como começaram a ser contadas ou quando começaram a ser inventadas. Antes de se chegar a Leidesplein há uma pequena estátua, que passa imperceptível a quem não lhe prestar atenção, de tão entretida que está a fazer o que a puseram a fazer. O homem corta lenha, um enorme e vigoroso ramo, dos poucos que não se deixam abanar pelo vento. Curvado sobre si mesmo, olhos escondidos, arrumados no machado que desapareceu já, minúsculo, nos nós do ramo, sugere que tudo possa ruir.
Há quem diga que foi a Rainha Beatriz, que entretanto resignou, que mandou instalar a pequena estátua, para lembrar que a Holanda se fez a partir da relação intensa com a natureza, conta Hans, o empregado do Café Americano, uns metros ao lado, debaixo do sumptuoso lustre que, sozinho, enche a sala de luz. “Há quem diga que é mentira. Nós, holandeses, gostamos de contar a história como nos convém.”
Assim é, de facto, para quem vem de fora e encontra, na entrada do Rijksmuseum, uma inscrição que procura compensar o prolongado período de renovação, reformulando a exposição permanente, com uma “discreta” selecção de 300 obras, entre elas A Ronda da Noite, de Rembrandt, pintada entre 1640 e 1642, obra de tirar o fôlego e a pedir que cancelemos todas as reservas que temos. Pausa para respirar. Não há, em todas as linhas de movimento deste quadro, uma só ideia sobre a construção do mundo que não se reflicta, depois, em todo o resto da colecção. Mesmo que nessa inscrição na entrada a História esteja a tentar explicar-se de um modo algo enviesado. A conquista dos mares, como os holandeses gostam de contar, coloca os espanhóis, os ingleses e, claro, os portugueses, num segundo plano. Cada país contará, o melhor que sabe, a sua história, mesmo que a sua, seja, também, a história dos outros.