Já não haverá muita gente como António Ribeiro Pinho em Vila Velha de Ródão, imaginamos. Gente que conhece o rio “de ponta a ponta, pedra por pedra”; gente que conhece o leito do Tejo. O “verdadeiro”, não este que agora vemos, que mais do que rio corrente é uma albufeira, as águas domadas pela barragem de Fratel e sujeita aos caprichos da barragem de Cedilho.
No cais de Vila Velha de Ródão, António aponta para o meio da água desenhando rotas imaginários onde o rio antes corria – “era muito mais bonito”; recordando como quando o leito enchia os barcos “rodopiavam sob a ponte”; revivendo as noites em que dormia nos “picaretos”, os barcos típicos daqui, com o pai e a família, que viviam da pesca - “do meio para trás havia um abrigo, onde dormíamos”. Nesses tempos, havia sável e lampreia em abundância; os moinhos (caneiros) erguiam-se de dois em dois quilómetros a montante de aqui, a caminho de Espanha, para moer trigo, milho e centeio.
Agora, tudo são memórias. A barragem ditou a submersão de parte da paisagem com a qual cresceu António Ribeiro Pinho e com ela um modo de vida. Ironicamente, pouco antes da conclusão da barragem, apareceu o que pode ser um novo modo de vida, o turismo – é nisso, pelo menos, que aposta a autarquia. Correcção: não apareceu, estava aí há 20 mil anos, mas só então se “viu” – um conjunto de gravuras rupestres, horizontais, da chamada Pré-História Recente, no que constitui uma das maiores concentrações da Europa, a maior da península, o Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo.
Mais ironia: “apareceram” as gravuras para logo depois serem escondidas pelo novo Tejo – fora de água ficaram parte das do sítio de S. Simão e as dos núcleos de Gardete e Ocreza, ainda assim sujeitas ao voluntarismo do rio, que, depois de um Inverno chuvoso como o deste ano, ainda corre cheio, arrastando lamas e destroços que não nos deixam abeirar delas. Ficaremos pelo Centro de Interpretação da Arte Rupestre do Vale do Tejo (CIART).
Contudo, a generosidade do Tejo com Vila Velha de Ródão não ficou por ser uma xistosa tela-altar, e esculpiu uma paisagem icónica e monumental, as Portas de Ródão, parte do Geopark Naturtejo, que ao ser “descoberta” nas “Sete Maravilhas Naturais de Portugal” ajudou a um boom turístico nunca antes visto.
Rupturas e encontros
Estas terras são, portanto, um ponto de ruptura e um ponto de encontro. E um não anda desligado do outro: aqui onde a crista quartízica é quebrada pelo incansável correr do Tejo, povos antigos encontraram o seu “axis mundi” no topo dos penhascos povoados de grifos que levam o nome de Portas de Ródão. “Se imaginarmos como o rio tinha um caudal bem menor, é fácil para eles verem ali o topo do mundo, com o sol por cima”, explica-nos Ana Sílvia Silva, técnica de turismo da autarquia.
Desse povoamento pré-histórico e da falha geográfica centro de um mundo antigo, se faz, então, a fama à espera de ser amplificada de Vila Velha de Ródão, vila à beira-Tejo que não mais deixou de ser habitada. Até nós chegaram vestígios avulsos dos povos que por aqui passaram, ainda que os que por aqui estão agora possam não os conhecer.