Fugas - Viagens

Continuação: página 2 de 8

A cidade líquida e salgada que é um passeio marítimo

A baía de Orzán ainda espera veraneantes neste final de Maio frio e na outra ponta ergue-se a Torre de Hércules — por trás dela seguimos o lento movimento de um navio cruzeiro em direcção ao mar, vindo do porto abrigado na ria da Corunha. A tranquilidade do “postal” torna as histórias dos ventos de 120 km/h e de tempestades com ondas de mais de 19 metros quase mitos — mas são bem reais. Tanto que são uma das razões que podem explicar o mistério da Torre de Hércules, que, quase dois mil anos depois da construção, ainda se mantém em funcionamento — esta sempre foi zona complicada para a navegação e um farol um bem de primeira necessidade. Este até esteve abandonado e viu algumas das pedras que o constituíam desviadas para construções militares, mas foi recuperado, ganhou nova cara no século XVIII e manteve o núcleo original — romano, da autoria de um engenheiro de Coimbra, Caio Servio Lupo, e, desde 2009, Património da Humanidade.

O ar está cheio de vento e do som das gaitas-de-foles quando nos aproximamos para conquistar os 242 degraus que nos contemplam no farol romano com capa neoclássica. Cruzamo-nos com Mil Hespán que agora faz visitas guiadas e, claro, apresenta Breogan, que as lendas dizem ter sido o fundador da cidade celta, onde construiu uma torre. Do seu alto, o seu filho, Ith, terá visto terra no horizonte e partiu à conquista dela, a Irlanda. Foi morto, mas o seu filho Mil voltou e conseguiu submeter a Irlanda, como conta o irlandês Livro das Invasões. Contudo, a sua estátua agora está na base de uma torre que homenageia Hércules — outra lenda: diz-se que o herói veio aqui para derrotar o gigante Gerião e libertar o povo da sua tirania — lutaram durante três dias e, depois da vitória, Hércules corta-lhe a cabeça e enterra-a junto do mar com uma torre-farol para celebrar. Duas ideias de Europa encontram-se aqui, portanto, como sublinha o nosso guia: a clássica (greco-romana) e a celta. A sua síntese encontra-se no parque escultórico, 47 hectares aos pés da torre, que se desdobra em obras que desenham as origens mitológicas do lugar e as ligações ao mar do povo galego, enquadradas em elementos pré-existentes no local, como os mais antigos testemunhos da ocupação da península, no Monte dos Bicos.

ADN feminino

A Torre de Hércules pode ser presença tutelar na Corunha desde os tempos em que a zona se transformava em ilha na maré alta, porém esta é uma cidade de ADN feminino, ouvimos. A lenda diz que o primeiro habitante foi uma mulher, Crunia, por quem Hércules se apaixonou — e que deu nome à cidade reconstruída e repovoada por Alfonso IX no século XIII: as incursões contínuas de vikings e normandos a partir do século V levam a população a abandonar a Brigantium romana e a refugiar-se no interior, O Burgo, hoje parte da cidade; e a sua personagem mais celebrada é Maria Pita, a mulher que derrotou Francis Drake (nesta altura já sir e não pirata, que tentava conquistar a Galiza para incentivar a rebelião portuguesa contra a Espanha de Filipe II, Filipe I de Portugal) e que, diz-se, tinha problemas com a justiça: teria “despachado” quatro maridos, com chá de teixo — o quinto morreu nas lutas.

--%>