Fugas - Viagens

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A cidade líquida e salgada que é um passeio marítimo

E se falamos em passado e futuro é impossível não mencionar a visão proporcionada pelo vanguardista edifício da Fundação Luis Seoane, construído nas margens da cidade velha, perto do Museu Militar, num antigo quartel militar — além do carácter marítimo, a Corunha sempre teve funções militares (“a península era fácil de defender”) e vemos muitos edifícios na parte antiga que agora têm novas funções. De granito e vidro, a sua estrutura é a de um grande espigueiro galego que abraça o que foi o antigo Pátio de Armas.

Regresso ao mar

Voltamos ao início. Não ao polvo, que chegámos a encontrar no prato; à água, do mar e da ria, que impregna a ciudad herculina. A que se deixou domar no porto da cidade — 90% artificial, resultado do crescimento da cidade que foi conquistando algum terreno ao mar de tal forma que os edifícios das galerias na Avenida Marina ainda têm as marcas do local onde os barcos se prendiam — e a que vai e vem até às praias. Na Corunha, as praias urbanas mais conhecidas estão dispostas em torno da sua baía, uma “concha” em areal contíguo um “andar” abaixo do Passeio Marítimo; por acaso, do cimo da Torre de Hércules, descobrimos um daqueles segredos que só aos corunheses pertencem — a pequena enseada entre escarpas que é a praia das Lapas.

Nesta terra de marinheiros de barcos vermelhos — a cor tradicional, que permitia serem vistos em região de tempestades fortes —,  a mesma cor que pinta os candeeiros de ferro forjado que bordam o Passeio Marítimo, o mar entranha-se também em nós. Pelos olhos, pelo nariz, pelos ouvidos. Porém, não sabíamos que a Corunha tinha o “som do mar mais bonito do mundo”. Pelo menos em 2009, quando ganhou o concurso organizado pela cidade polaca de Slupsk, com uma gravação de na praia de Orzán, onde se ouve o ritmo das ondas, os gritos das gaivotas. Mas não surpreende: é à beira-mar que fala mais alto esta cidade líquida e salgada. E é aí que ela se impregna em nós.

Picasso: “período corunhês”

O prédio da Calle Payo Gómez é anódino e a indicação quase passa despercebida; a escadaria de madeira, elíptica, já viu melhores dias. Subimos até ao segundo andar para uma viagem ao passado: o típico apartamento burguês de final de oitocentos. Com uma particularidade: aqui viveu Picasso, quando assinava como P. Ruiz e fez a sua primeira exposição, numa loja de móveis: Continúe así y no dude que alcanzará días de gloria, lê-se numa página do La Voz de Galicia, em exibição. Foi em 1895, Picasso tinha 13 anos e pouco tempo depois a família trocaria a Corunha, onde permaneceu quatro anos, por Barcelona.

Durante esses anos, Picasso pintou muitas paisagens da cidade — a inevitável Torre de Hércules (à qual chamava “torre de caramelo”) — e muitas cenas quotidianas, incluindo mendigos, “a quem dava pão e moedas”; começou os retratos a óleo e desenhou caricaturas para a revista La Coruña.

Há apenas dois originais de Picasso (e vários manuscritos) na casa museu corunhesa, dois desenhos em exposição na sala, a que se juntam algumas cópias. Mas tal não é revelador da importância dos seus tempos na cidade — aqui perdeu a irmã mais nova, Conchita, aqui pintou 72 obras (a maioria em Barcelona), aqui perdeu os traços juvenis para se fazer artista. A casa é apenas um dos pontos do périplo onde se pode compor o “retrato do artista quando jovem”.

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