Com a Virgem do Rosário como padroeira, os contornos da cidade também têm a sinuosidade do corpo feminino e regressamos ao Passeio Marítimo para o perceber: começando na Avenida da Marina com as suas galerias de vidro oitocentistas a marginar o velho porto, contornando a cidade medieval no topo e deslizando pelo Forte San Antón, antes de dar de caras com o mar aberto, rasando a Torre de Hércules, o Aquarium Finisterrae (um dos mais importantes do país), o Domus (museu dedicado ao Homem que daqui se vê como uma vela de pedra inflada de vento), dobrando a baía de Orzán, tergiversando o estádio Riazor até ao Museu de Ciência e Tecnologia (MUCYT) e descansando no elevador panorâmico do Monte de San Pedro. Em linha recta, o porto e a baía de Orzán não estão separados mais de 500 metros — aí temos a cintura.
À entrada dessa “cintura”, deixando a cidade velha para trás, está a praça que homenageia a heroína. A estátua de Maria Pita, em bronze, hoje rodeada de garrafas de cervejas, em frente ao Palácio Municipal, assinala o centro cívico da cidade — a praça faz as vezes da plaza mayor espanhola, mas não é totalmente fechada, o edifício do Ayuntamiento, monumental em estilo neoclássico com piscar de olho ao modernismo (concluído em 1912), é uma pequena ilha no topo da praça. As arcadas dos edifícios em redor albergam cafés, restaurantes e outro comércio, que transbordam em esplanadas, assegurando que a animação está sempre presente; mas neste domingo de manhã é um vislumbre da velha Espanha que vemos entrar na praça: a banda filarmónica a rigor — e à galega, com gaitas-de-foles — vem seguida de elementos de uma confraria, com as suas capas brancas solenes, e a procissão termina com um grupo de mulheres, mantilla na cabeça e pose orgulhosa.
O triunfo da burguesia
Não conseguimos descobrir o motivo — “algo religioso”, atreve-se o guia — mas mais facilmente podemos imaginar aqueles edifícios em volta com as damas a observar discretamente o que se passava na praça. Quando entramos, pela Porta Real, junto ao velho porto, pressentimos algo de afrancesado nas construções neoclássicas, dissipado depois pelas galerias nos andares mais altos. Essa é a identidade corunhesa e está bem patente no edifício que faz esquina nessa porta e que impressiona à primeira vista — mesmo não tendo visto o nascer do sol a reflectir-se nas suas galerias (o que lhe vale o nome, lemos depois, de el diente de oro), caixas brancas envidraçadas em varandas, cada qual com a sua decoração. Este edifício tem a fachada principal para a Praça Maria Pita, neoclássica como o resto da praça, e é nas traseiras que se exibem as galerias.
As traseiras são a Avenida Marina, de que se diz ser o maior conjunto de galerias do mundo — e se já foi a zona mais pobre da cidade agora é mais afluente. Nesta zona a abraçar o velho porto viviam os pescadores que começaram a utilizar as galerias por um motivo puramente prático e económico (a fachada envidraçada protegia das chuvas e ao mesmo tempo retinha o calor) e durante muito tempo foram proibidas nas fachadas dos edifícios.