Passado e futuro
É como uma pequena ilha de tranquilidade, o jardim de San Carlos, varanda da cidade velha — e alta. Num cotovelo da península virado à ria, entramos como se num mundo à parte, este que ainda está protegido pelos muros da antiga fortaleza, recolhido sob copas largas das árvores a protegerem este pequeno jardim romântico que alberga os restos de um herói que os poetas românticos ingleses (e até a poeta galega Rosalía de Castro) não se cansaram de exaltar — Sir John Moore, morto na Batalha de Etelviña, durante a Guerra Peninsular. Temos vista para o castelo San Antón, que alberga o Museu Militar, em zona que já foi de ilhas, e para o porto que se fez rico com o comércio para as Américas e que se foi conquistando ao mar desde os anos 1950.
Estamos na “cidade velha”, o ponto mais alto da cidade, um dédalo de ruas que subimos e descemos em tranquilidade inesperada. É domingo, o que pode ajudar, e as esplanadas começam apenas agora a abrir. O silêncio é quebrado, violentamente, nos arredores da Praça Azcárraga, com os veículos de limpeza, sinal das noites, que podem ser agitadas, como o sabem ser nas zonas históricas espanhola. É a praça principal da cidade velha, antigo local de mercados e dos paços do concelho, além da sede da capitania, símbolo da importância da urbe. Árvores, canteiros e fonte no centro do espaço rectangular, que exibe na sua orla o segundo edifício mais antigo da cidade, a Igreja de Santiago, do século XII, onde as autoridades municipais se reuniam nos séculos XIV e XV.
Outras pequenas pracetas se descobrem entre igrejas e conventos, como as de Santo Domingo e de Santa Bárbara, esta um quadrado de pedra à sombra de copas floridas de árvores flanqueadas pela igreja e muros do convento medieval (ainda de clausura); a Igreja de Santa Maria, românica de transição para o gótico, que foi a principal da cidade e por isso ampliada no século XIX com o consequente derrube de casas antigas — agora, edifícios oitocentistas mesclam-se entre os antigos.
Callejar pela cidade velha é também ser-se surpreendido por assomos barrocos entre a esquadria medieval, em igrejas ou na Casa da Moeda, por exemplo, onde estes se assumem assimétricos em interacção com a torre; ou por uma galeria inesperadamente num rés-do-chão (a regra é começarem no primeiro andar) – é, provavelmente, uma das mais antigas e, claro, mais especiais: uma explicação, conta o nosso guia, é que seria o castelo da proa de um dos navios que vinha à Corunha para reparação reaproveitado pela família do operário.
Sinais da vitalidade são os espaços de co-working que se anunciam nos edifícios antigos ou as lojas alternativas que espreitamos. Uma pulsão mais subterrânea do que aquela que nos últimos anos deu à Corunha uma série de espaços museológicos de carácter científico e artístico, que se afirmam na cidade como marcos arquitectónicos e na região como centro de conhecimento. Nós visitámos o Museu Nacional de Ciência e Tecnologia, o MUNCYT, no edifício Prisma de Cristal, um cubo de vidro que é o invólucro para uma árvore de betão que faz a divisão dos diferentes espaços dos museus e que recebeu o Prémio Nacional de Arquitectura Jovem. Aberto há um ano, alberga mais de 15 mil objectos, que acompanham as invenções científicas e tecnológicas dos últimos cinco séculos, com um espólio tão ecléctico que aqui convivem um rádio astronómico do século XVI com Gillettes, aceleradores de partículas com torradeiras — destaca-se parte de um Boeing 747, durante 40 anos o “gigante dos céus”, que tem a curiosidade de ter transportado o quadro Guernica de volta a Espanha, depois do exílio imposto por Picasso enquanto durasse a ditadura espanhola.