Ela, com uma flor amarela no cabelo castanho e liso que lhe cai pelas costas, uns olhos coruscantes, negros como um corvo mas de uma luminosidade intensa, responde-me com um humor que, de tão inesperado, me deixa sem reacção:
- Mas qual é a tua ideia? A rota das flores? Mas se tens aqui uma para que precisas de mais?
Um homem, protegido do sol pela fachada branca da catedral, folheia um jornal onde se destaca uma rapariga com mais sorriso do que roupa e, como se escutasse aquele diálogo, de todo inverosímil, entre o viandante e a rapariga, dardeja olhares na nossa direcção de quando em quando.
- Olha, passou um há um ratito. O melhor que tens a fazer é apanhar ali, junto àquela esquina, o 218, que te deixa nas ruínas. Depois, vai perguntando, há sempre autocarros. São como vocês, os homens, perde-se um, apanha-se outro, uns são mais velhos do que outros, mais ou menos resistentes, mais ou menos bebedolas.
A sonora risada, deixando ver os dentes imaculadamente brancos, fez o homem levantar a cabeça e fitá-la gravemente.
- Voltas a passar por Santa Ana? Óptimo. É uma cidade bonita, não te parece? Cá te espero mas vê se, pelo menos em pontualidade, és capaz de ser diferente dos autocarros. Partir, partem a horas, chegar, é que nunca se sabe. Pelo menos em El Salvador.
E voltou a rir com prazer.
- Queres saber o meu nome? Ana, como a santa, mas um bocadinho menos do que ela.
Perscrutei uma vez mais a brancura da catedral e, sorrindo perante a perspectiva de fazer o sinal da cruz, pensei na minha mãe, a milhares de quilómetros de distância, e no adjectivo que utilizaria para definir esta personagem com quem acabo de travar conhecimento e de quem agora me despeço. Ela chamar-lhe-ia atrevida, eu, já há alguns dias em viagem pela América Central, mais identificado com o carácter das suas gentes, prefiro rotulá-la de divertida.
- Passe adelante. Está lotado mas num rato tem lugar.
O cobrador, que não me cobra mais de 25 cêntimos de dólar, é simpático, expansivo como as gentes de El Salvador, tão mortificadas e, ao mesmo tempo, tão determinadas a sair das trevas.
No interior, o barulho ensurdecedor da música mistura-se com os gritos de um homem que promete uma solução para todos os problemas da pele e que, perante a indiferença do povo, dividido entre a sonolência e a paisagem, desce logo de seguida, abrindo as portas a outro que invoca todos os santos do mundo.
- Gaseosa, gaseosa, les doy.
O ritmo de entradas e saídas no 218 é frenético. Um menino, com uma expressão triste e rígida, vende escovas de dentes maleáveis; uma mulher, com um rosto opaco, oferece canetas que projectam luz.
A pitoresca Ataco
Tudo, em El Salvador, parece viver de contrastes, como o cemitério onde agora pouso o olhar, de uma multiplicidade de cores tão garridas que lhe confere mais vida do que morte. Uma mulher, de feições magras sulcadas por rugas, passeia-se por ali, por entre pedras e cruzes pintadas, depositando flores aqui e acolá no meio de um silêncio verdadeiramente sepulcral. Por instantes, como que hipnotizado, observo os seus movimentos e dou por mim a interrogar-me por que razão os mortos são presenteados com mais flores do que os vivos, um tema que, bailando no meu cérebro ainda dorido pelo ruído do 218, serve de prefácio para a entrada em Tazumal, que, na língua maia quiche, significa a “pirâmide onde as vítimas eram cremadas”. Consideradas as mais importantes e impressivas de El Salvador, a despeito da sua grandeza não poder ser comparada à de outras existentes na Guatemala, nas Honduras ou no México, as ruínas de Tazumal são apenas uma das seis conhecidas numa área arqueológica que se estende por 10km2, a maior parte ainda por escavar.