Fugas - Viagens

Continuação: página 2 de 8

A floresta de Sandokan é do tempo dos dinossauros

Sem uma ruga sequer a subtrair beleza aos pequenos olhos verde-tímido, a italiana era de uma simpatia ternurenta. Na fila posterior à nossa, viajava um casal holandês com quem havia cruzado olhares no cais de embarque. De estilo hippie, a pele enegrecida e carcomida pela acção do sol acrescenta-lhes uns a mais nos cartões de cidadão. Ele ou dorme ou mantém-se acordado com olhos fechados; ela esforça-se por memorizar os vários guias que comportava na algibeira. E é só. Quatro “camones” arremetidos a um amplo compartimento desprovido de qualquer luxo mas com dois enormes plasmas, um em cada entrada, a passar uma comédia policial dos anos 1980.

Pela moldura da janela baça, o filme é bem mais interessante, colorido e, sobretudo, natural. Desfilando em modo compassado, a paisagem adquire outro chamariz quando trespassa densas zonas florestais ou atravessa pontes sobre o rio Kelantan, cujas águas barrentas são ladeadas pela selva intransponível. A animação surge às primeiras paragens. Os locais preenchem os (muitos) lugares disponíveis com a algazarra estudantil a avivar um compartimento desenxabido. Sem espanto, o quarteto de turistas é alvo fácil da curiosidade alheia, tornando mais jovial uma jornada que ansiamos célere. A viagem, de fio a pavio, ou de Tumpat a Gemas, percorre 526 km, mas o epíteto de “comboio da selva” foi granjeado na secção que corresponde à área de Taman Negara. Notamos as razões quando a vegetação afaga as paredes das composições e nos engole, a todos, como se o comboio fosse um comprimido natural, em determinadas secções do trecho. Infelizmente, também percebo por que razão a Malásia apresenta a maior taxa de desflorestação mundial – tem vindo a perder 0,65 pontos percentuais/ano da sua área florestal, devido à urbanização e, sobretudo, à conversão da floresta em imensas áreas de palmeiras (de onde se extrai óleo) e árvores da borracha. Ainda assim, três quartos da Malásia são locais compostos por espaços verdes, dos quais dois terços são espaços naturais virgens. É esta a percentagem que busco.

O apito furioso da locomotiva desperta-me dos meus pensamentos anti-civilizacionais. Uma placa singela anuncia Jerantut, o destino do grupo dos quatro. A cidadezinha é o portão de entrada em Taman Negara que significa, à letra, “Parque Nacional”. A maior parte dos visitantes passa aqui a noite, mas esse não era o meu plano, nem de nenhum dos comparsas. As lojas chinesas tomaram de assalto a rua principal, a Diwangsa, muito apreciadas por transaccionarem álcool e tabaco, contrariando a lei seca imposta pelos muçulmanos. Os holandeses muniram-se de uma quantidade inusitada de bebidas, enquanto eu e a italiana nos despedimos, sem alaridos, porque, ao contrário do casal, que ia de táxi directamente para Kuala Tahan, a aldeia que serve de acesso ao parque, eu e a toscana enveredámos pela via mais prazenteira, mesmo que demorada. Primeiro, de autocarro até a Kuala Tembeling e, dali, de canoa rio acima ao longo de três horas insubstituíveis.

Acomodado na proa, senti, finalmente, o poder da selva a desfilar, com exuberância, diante dos meus olhos extasiados. Este aperitivo exponenciava os já de si elevados níveis de adrenalina, inquieto com o que me aguardava. Termino o dia como o comecei: a clamar contra o lusco-fusco, resignando-me, porém, às leis da natureza. Em Kuala Tahan elas fazem-se notar na sua plenitude. As trevas sonegam um gigantesco jardim zoológico ao ar livre, de insectos, repteis e aracnídeos. Já sem Isabella por perto, que partira numa excursão previamente organizada de vários dias de caminhada, a longa jornada embala-me num sono profundo. Sonhei com as sardaniscas e respectivos parentes que, comigo, dividiram, sem pagar, o quarto do bungallow.

--%>