Fugas - Viagens

  • O poeta Dylan Thomas, que teve uma vida curta e turbulenta, de olhos postos nas docas da cidade onde nasceu, num raro momento de serenidade
    O poeta Dylan Thomas, que teve uma vida curta e turbulenta, de olhos postos nas docas da cidade onde nasceu, num raro momento de serenidade

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Swansea é como Dylan Thomas: só se percebe através da alma

Um casal de idosos passeia-se de bicicleta, um jovem passeia-se a si próprio e a um bonito cão felpudo; não se ouve um único ruído de um carro e, agora que regresso à outra margem, utilizando desta feita a menos imponente Barrage Bridge, aberta ao público (a pé ou de bicicleta) desde 2003, tenho uma panorâmica ainda mais privilegiada sobre a marina, com a sua cara lavada e despontando no horizonte o LC2, um centro de lazer que terá custado qualquer coisa como 32 milhões de libras (cerca de 38 milhões de euros) e que inclui, entre outros divertimentos, piscinas com ondas, escorregas e até – primeiro no mundo – a prática de surf no seu interior, um investimento megalómano mas com as suas compensações: de acordo com o Steam (Scarborough Tourism Economic Activity Model), uma instituição que avalia o impacto do turismo na economia local, os turistas despenderam, em 2013, mais de 360 milhões de libras (430 milhões de euros) na baía de Swansea, um incremento de 4% face ao ano anterior e que resulta de um aumento (cerca de 200 mil) de visitantes em comparação com 2012 – em 2013 o número esteve muito próximo dos 4,5 milhões.

Escuto, à distância a que me encontro da baía, o marulho do mar; o sol, na sua timidez, espreita por entre o cinzento, quer anunciar um final de tarde radioso que não passará de uma promessa. Sento-me, por instantes, admirando os iates perfilados numa organização exemplar e leio para melhor compreender o poeta.

Na famosa luz desconhecida do grande e fabuloso Deus amado. / A treva é um caminho e a luz um lugar, / O céu que nunca existiu / Nem existirá jamais é sempre um verdadeiro / E, nesse espinhoso vazio, / Farto de amoras nos seus bosques, / Os mortos crescem para o seu júbilo / Ali, desnudo, ele erraria, / Com os espíritos da baía que se curva em ferradura. 

Sinto a ansiedade de ver o mar, a baía em forma de ferradura, mas primeiro deparo-me com uma estátua, de costas para mim, um capitão imortalizado em Under Milkwood (um drama narrado na rádio e que mais tarde foi adaptado ao cinema, numa realização de Andrew Sinclair e tendo como actores principais Elizabeth Taylor e Richard Burton, o galês que sempre assumiu a sua simpatia por Dylan Thomas). É o Captain Cat, o velho capitão cego, uma das personagens mais carismáticas da peça, o homem que permanece sonhador na eterna recordação dos companheiros que o mar se encarregou de levar para nunca mais trazer e, mais grave, incapaz de esquecer a sua grande paixão, Rosie Probert, olhando através da moldura da janela tantos e tantos regressos que as águas jamais comtemplarão.

Pálida chuva sobre o porto que encolhia / E sobre o mar que humedecia a igreja do tamanho de um caracol / Com seus cornos através da névoa e do castelo / Encardido como as corujas / Mas todos os jardins / Da Primavera e do Verão floresciam nos contos fantásticos / Para além da divisa e sob a nuvem apinhada de cotovias / Ali podia maravilhar-me.

Museu no museu

E continuo, não maravilhado mas confortado, descobrindo os pequenos mundos do mundo de Dylan Thomas. No horizonte, a curta distância, uma ponte intransitável, em ferro, deixa ver, do outro lado das águas, o teatro do poeta, perpetuando a memória do homem, do artista enquanto metáfora. Sou obrigado, ainda que provido de prazer, a contornar parte do estuário, admirando, demoradamente, os barcos, uns mais novos, outros mais antigos, chocalhando docilmente ao sabor da ondulação. E, de volta à ponte, velha na sua decadência, já na outra margem, sento-me ao lado do poeta, da sua estátua, numa serenidade que jamais caracterizou a sua existência, tão feita de boémia, de loucura, tão ou mais preenchida de álcool (já lá vamos) do que a corrente de um rio caminhando até à sua foz. Na fachada do teatro, desde 1983 conhecido como Dylan Thomas Theatre – mas até 1979 Swansea Little Theatre –, murais apelativos convidam o visitante a embrenhar-se num espaço que reúne mais de uma centena de actores amadores e técnicos, todos eles voluntários e verdadeiros entusiastas do trabalho do galês, também caracterizado nas suas paredes exteriores já consumidas pelo tempo.

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