Sentamo-nos no muro semidestruído, virados para Sul, centrados num horizonte sem fim. Logo no início da caminhada, John aponta para o chamado tijolo de carácter, que continha a marca deixada pelo artesão ou oleiro, cinco séculos depois.
- Em Badaling já não existe nada disto, pelo facto de ter sido restaurada e pelo impacto negativo que provoca a presença diária de milhares de visitantes.
Um pormenor interessante mas nada suplanta o sossego de um lugar mágico. Não se avista vivalma. A paisagem é de cortar a respiração: o muro sobe sobre os picos das montanhas para, em seguida, resvalar por ravinas profundas, em desafio à gravidade. Uma vez que a área de Gubeikou era uma passagem estratégica para Pequim, as mais de 40 torres de observação pelas quais passamos estavam muito próximas umas das outras. Ao contrário da maioria, estas foram muito reforçadas e construídas com tijolos até sete metros de altura. O objectivo era o de impedir que os invasores do Norte, as tribos mongóis, alcançassem o coração da China. Este trecho da muralha, que vai até Jinshanling, o destino do nosso primeiro dia, é considerado um óptimo exemplo da construção na dinastia Ming, erguido entre 1568 e 1583 no lugar de uma relíquia de mil anos construída pela dinastia Qi do Norte (550-577).
Fisicamente, a jornada ultrapassa os níveis de exigência anunciados. O problema maior prende-se com os infindáveis degraus conducentes às torres de observação, para além de apresentarem danos provocados pela acção de elementos naturais.
Não há estrelas no céu
Com o aproximar de Jinshanling e já com as pernas doridas de caminhar sobre um terreno irregular, muitas vezes pedregoso e, amiúde, sobre muralha alguma, aproveitei a paragem do almoço, ao estilo piquenique, para questionar sobre o local de acampamento. Circunspecto, John apontou pela moldura da janela de pedra da torre de vigia, em direcção à montanha escarpada do parque de Yanshan, na província de Hebei.
- Se acamparmos, será mais lá adiante, numa das torres de observação, perto do nosso destino, onde está o material.
Aquela dúvida, aquele “se”, provocou-me uma sensação de desalento, como se a longa marcha fosse infrutífera, o que não era verdade. O panorama ímpar e a obra grandiosa eram o deleite de qualquer viajante: de Marco Polo, da qual nunca fez relato, a Vaz de Camões, que dá testemunho da sua existência, no Império do Meio, de um “edifício nunca crido” (Os Lusíadas, X, 130, 1-4), que a própria cartografia chinesa só no século XVI começa a registar. E, de repente, sentia-me um dos cerca de um milhão de soldados que, em permanência, defendiam o muro e consequente nação do ataque das tribos mongóis. Se olharmos de uma torre de vigia para as infinitas e sombrias dobras da acidentada encosta da montanha, não é difícil imaginar o sofrimento dos soldados inimigos, especialmente no Inverno, enquanto marchavam ou cavalgavam desde o Norte, durante meses, para realizarem um ataque. As torres de vigia estão situadas de forma a fornecer uma vista o mais abrangente possível, e com uma série de mensageiros a cavalo, prontos a alertar os defensores noutros pontos da muralha, os chineses tornavam-se imbatíveis. Mas aquele manto de nuvens tenebrosas, que acampara nos céus, era mau augúrio. Pouco tempo depois, fomos obrigados a descer das muralhas e a caminhar sobre um terreno enlameado, que, virado a Norte, nunca olhara o Sol de frente.