- No seu limite, esta zona é ainda utilizada como instalação militar e não temos autorização para percorrê-la.
Caminhamos durante hora e meia pelo chão, ladeados por aquela parede de pedra encaixada como peças Lego. Uma forma diferente de apreciar a obra gigante, agora atravessando plantações de milho, canais de irrigação, por vetustas choupanas cercadas por mato bravo e flores do campo. Daqui percebia-se bem o estado precário em que se encontra esta extensão da muralha de Gubeikou, por nunca ter sido restaurada – a não ser por reparos específicos em áreas de risco.
Passadas largas horas, para lá das cinco, nada de sol nem de pessoas. O frio e a época do ano explicavam uma parte do deserto de gente, a outra era a remota localização dos roteiros turísticos. Ainda que acompanhado, sentia-me entregue à solidão que abraçava com regozijo, mesmo nada ali tendo, sentia-me pleno de tudo.
Jinshanling, que significa Montanha da Escarpa Dourada, estava à distância de um olhar, onde avistáramos os primeiros sinais humanos. O vilarejo converteu-se ao turismo e a maior parte dos locais assentou arraiais junto à muralha, à espera da chegada dos visitantes. E foi aqui que recebemos a notícia do pesaroso guia.
-Não há estrelas no céu. Não vamos poder dormir sob o dorso do dragão.
Até o vento parou de assobiar. Fez-se um silêncio cortante. John prosseguiu na explicação.
- Não vão querer passar a noite numa das torres de vigilância durante a tempestade que se aproxima. É muito perigoso.
Mostrámos determinação em ficar – mais acérrimos, os islandeses falaram da sua ilha de fogo e de gelo – até porque as torres eram cobertas, ainda que as janelas, abertas, não filtrassem a chuva que pudesse cair.
A contragosto, tentando recusar o óbvio, seguimos, na viatura que nos levou até Gubeikou, para uma quinta numa aldeia ali perto. Espartanos, os quartos apenas albergavam as camas de ferro individuais e um roupeiro que resistia contra a acção da humidade. Havia água morna e a cama tinha colchão, mas adormeci a pensar no chão duro e enregelado da muralha e na tenda que me serviria de tecto. Um viajante nunca saberá lidar com a frustração por ter falhado um propósito.
A lenda de Hei Gu
Choveu a noite toda. Exausto, nem a ouvi cair, mas o exterior ensopado não deixava margem para dúvidas. A precipitação passara o testemunho à humidade e ao nevoeiro. De regresso a Jinshanling, passámos por alguns turistas de idade avançada a caminhar na beira da estrada, apoiando-se em robustos cajados. Pela moldura dos vidros baços da viatura fitava a altaneira muralha, guardiã da nação milenar. Aqui, no chamado Segundo Vale, o muro exibia-se ainda mais deteriorado do que anteriormente. Já acomodado nas costas do dragão de pedra, fico extasiado com o clima sombrio que a neblina incutia às ruínas. Mais baixas do que na véspera, as nuvens engoliam a muralha no alto das escarpas. A humidade não permite perpetuar o momento em imagens, mas eterniza-se-me na memória. Era preciso seguir para Oeste, em direcção a Simatai, a uns 10 quilómetros de distância, o equivalente a quatro horas de caminhada, dependendo do tempo de cada paragem. Para lá de Simatai, alerta-nos John, “o percurso torna-se demasiado perigoso, sobretudo a partir do 12.º castelo”.