A paisagem acidentada mantém-se invariavelmente rude, de vegetação rasteira, praticamente inexistente, ornamentada por uma imensa coroa de pedra, que circunda montes, vales e montanhas, sempre pelas cotas mais elevadas. No início, quando se sai de Jinshanling, a muralha encontra-se em bom estado de conservação, facilitando o aquecimento das pernas para a impiedosa série de degraus que nos levam de uma a outra torre de observação. À medida que se avança lentamente para Simatai, volto a sentir a magnitude deste gigante dragão de pedra. Talvez sejam os membros inferiores a clamar por um piso regular cada vez menos presente nesta área e que se agudiza a cada lance de escadas semidestruídas. Há trechos que estão, literalmente, a cair aos pedaços. Há partes onde somos forçados a sair da muralha, ou porque ela não existe ou porque as escadas para ascender à torre seguinte são um amontoado de pedras roliças e perigosas. Depois, há torres inteiras, torres sem tecto e torres sem parede alguma. Há secções onde se caminha sobre pedra lisa e gasta, outras sobre tijolos irregulares e outras simplesmente sobre as pedras do interior do muro.
- O grau de preservação varia muito, mas, por norma, esta zona, terá uns 300 anos de idade, informou John numa altura em que o cinza nubloso cede, finalmente, lugar ao azul celestial, conferindo um brilho mágico ao lugar. Aquela luz foi o catalisador para o resto da jornada, depois da decepção provocada pelo São Pedro chinês do dia anterior. À medida que a Muralha se aproxima de Simatai, o estado de conservação (na verdade de modificação) vai-se acentuando, mas pelo menos ainda é possível ver as pedras originais da dinastia Ming. Com o bom tempo apareceram os vendedores vindos do nada, como invasores das tribos mongóis. Naqueles tempos, um infindável número de soldados protegia a Grande Muralha de atacantes. Agora são os visitantes a lidar com esta espécie de praga que retira fascínio ao lugar. Fazem lembrar aqueles bonecos de peluche movidos a pilhas alcalinas, sem parar, correndo em passos curtos de um lado para o outro. Oferecem t’shirts de gosto duvidoso, água, bolos caseiros, café e, até, cerveja. São peritos em negociar: uma senhora de pele tisnada e enrugada pela acção do sol apresentou-me uma proposta curiosa.
- Está cansado? Ofereço-lhe uma cama por 100 RMB/hora (cerca de 13€), anunciou numa mescla de inglês com mandarim.
Uma cama? Sorri perante proposta tão inusitada, sem perceber onde raio a vendedora, de baixa estatura e enfiada em vestes grossas e tradicionais, ia arranjar a dita cama. Mas nem quis saber, e por todas as razões – querer prosseguir caminho e livrar-me dos vendedores da área.
Após cerca de uma hora de caminhada, o insólito aconteceu. Adivinhem quem me aparece novamente na muralha? Ela mesmo, a baixinha persistente e divertida.
- Agora a cama é mais cara, porque vejo que estás cansado.
Não contive a gargalhada e perguntei-lhe como tinha surgido do nada. Ou não entendeu a pergunta ou não me quis deslindar o mistério. Fiquei a pensar na miríade de segredos que deveria encerrar a Muralha, ocultos dos visitantes de passagem como eu e respectivos companheiros de jornada.