Fugas - Viagens

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Bordéus, o despertar da Bela Adormecida

- Gosto deste estilo de vida, do clima, da descontracção das pessoas, dos muitos lugares onde se pode apreciar bom vinho e a gastronomia. Bordéus é uma cidade deslumbrante, segura e na moda.

De novo a caminho da Place de la Bourse, volto a passar pela Place de la Comédie, para admirar calmamente a perfeição de um rectângulo que domina a praça, o Grand Théâtre, mandado erguer em 1770, outra obra desse tempo de esplendor. Financiado pelos negociantes de Bordéus da loja maçónica L’Amitié e levantado sob a direcção do arquitecto parisiense, Victor Louis, durante o reinado de Luís XVI, o teatro acabaria por inspirar, anos mais tarde, em 1860, a construção da ópera Garnier, em Paris, um dos monumentos mais emblemáticos do Segundo Império e símbolo de ostentação e do poderio de Napoleão III. A sala de espectáculos do Grand Théâtre (no interior do edifício há cafés que nos transportam no tempo) é uma das mais impressionantes do século XVIII e frequentemente comparada às óperas de Versalhes e de Turim, uma beleza que esmaga e que, de tão assombrosa, quase faz esquecer a sua efémera vocação política — em circunstâncias trágicas, em 1870, 1914 e 1941, com Bordéus elevada a capital, foi sede da Assembleia Nacional. 

Mágica é a noite

A noite tomba sobre a cidade, caminho na direcção do Garonne e não tardo a escutar o marulho das suas águas, onde já se espalham as luzes amareladas, contorcendo-se como malabaristas ao sabor da corrente. Mesmo à minha frente, mas ali desde 2006, incluído no projecto de requalificação dos cais e concebido por Michel Corajoud (com a colaboração de Jean Max Llorca e do arquitecto Pierre Gangnet), está o maior espelho de água do mundo, com uma área de 3450 m2, a simbiose perfeita entre água e neblina sobre lajes de granito e tão apreciado pelos mais pequenos e pelos casais de namorados — seguramente ainda mais sedutora no Verão, quando o sol castiga a cidade, do que por estes dias, que não são mais do que um anúncio da Primavera.

É com alguma dificuldade que me desprendo daquela espécie de magnetismo que emana do rio mas logo me deixo enfeitiçar uma vez mais, no momento em que me viro para a cidade, para a Place de la Bourse, de olhos pousados nas luzes cintilantes, iluminando para a direita e para a esquerda as fachadas harmoniosas na sua beleza eterna e intacta de dois séculos.

Gwenaëlle Towse-Vallet já me prevenira mas, no meu cepticismo, em momento algum admitira que Bordéus se transfigurasse num lugar tão mágico quando o dia se extingue. Mas transfigura-se. Lentamente, as suas artérias vão abandonando aquela paz crepuscular para dar lugar, mal a lua se levanta, cheia e pálida, a um formigueiro impetuoso, a uma maré que vai rugindo cada vez mais forte, quando os estudantes, na incessante procura dos prazeres mundanos, enchem a atmosfera com suas vozes. Alguns deles dão início a esta peregrinação nocturna com um copo de Lillet, um aperitivo tradicional feito à base de vinho branco, sumo de laranja e quinino, no Le Régent, na Place Gambetta, hoje uma espécie de ilha esverdeada no meio do intenso movimento do centro da cidade mas ligada, durante o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução, à infame recordação de uma guilhotina que cortou as cabeças de 304 alegados contra-revolucionários, dos quais quase meia centena de mulheres.

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