Fugas - Viagens

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Bordéus, o despertar da Bela Adormecida

Permito que a lenda reze.

No século VIII, um monge bretão fugiu de Vannes, a sua cidade-natal, para procurar refúgio numa das grutas de um lugar chamado Ascum bas (o antigo nome da aldeia). Emilion era o nome desse monge em fuga. Vivendo a sua vida de eremita, Emilion realizou alguns milagres e rapidamente se tornou famoso na região e mesmo para lá das suas fronteiras. Com a mesma celeridade, o monge viu-se rodeado de muitos discípulos e, com a ajuda destes, evangelizou o lugar e transformou-o num importante centro religioso.

Em Saint-Emilion, o trabalho do homem e a natureza sempre viveram numa perfeita harmonia, como harmonioso é o quadro composto por vinhedos e conjunto arquitectónico. Em 1999 e pela primeira vez, umas vinhas passaram a integrar a lista de Património Mundial da UNESCO como Paisagem Cultural — as de Saint-Emilion.

Ergo o copo contra os raios tépidos do sol. É tempo de regressar a Bordéus e de redescobrir ainda, durante mais umas horas, uma boa parte do seu legado.

Pontes sobre o Garonne

Património Mundial da UNESCO desde 2007, permanece a dúvida se esta classificação é a causa ou o efeito deste rejuvenescimento da cidade. A sua monumentalidade nunca a abandonou mas a imagem que guardo de Bordéus, dos últimos anos do século passado, está mais associada a uma atmosfera decrépita, como uma idosa cansada da vida, às suas ruas estreitas que, embora protegidas por André Malraux, o escritor que foi ministro da cultura (o primeiro da era moderna depois de Charles de Gaulle ter criado a pasta, em 1958, quando regressou à presidência da república), pouco mais tinham para oferecer do que fachadas negras e gastas pelo tempo. 

Como um sol resplandecente que ocupa um espaço onde antes cavalgavam nuvens cinzentas, Bordéus sai da penumbra e potencia a infinitude da sua beleza, tão bem expressa na histórica Esplanade des Quincones, uma praça idealizada em 1820, com a sua elegante fonte que é um monumento aos Girondinos, um grupo de deputados, moderados e burgueses, da Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa — 22 dos quais executados em 1793 depois de serem acusados de actividades contra-revolucionárias.

Regresso ao rio e caminho ao longo da margem esquerda até me surgir no campo visual a Pont de Pierre, a primeira em Bordéus, autorizada por Napoleão Bonaparte e inaugurada em 1822. Até essa altura, a travessia entre as duas margens do Garonne era feita de barco e, após a sua construção, permaneceu durante 150 anos como a única a ligar o centro histórico ao bairro de La Bastide. Nos dias de hoje, a ponte de pedra, com os seus 17 arcos, tantos como as letras do nome do imperador, é cruzada por modernos eléctricos movidos a energia solar mas continua a ter um lugar muito especial no coração dos habitantes da cidade. Situada entre esta e a Pont d’Aquitaine, a Jacques-Chaban Delmas (a quinta a ser erguida sobre o rio e assim denominada para prestar tributo ao antigo general da Resistência durante a II Guerra Mundial que mais tarde se tornou presidente da câmara de Bordéus), com o seu toque de modernidade, é uma rival à altura, especialmente à noite, quando a iluminação lhe transmite ainda mais encanto e uma imponência que as suas medidas ajudam a exacerbar — 575 metros de comprimento e 77 de altura, o que lhe confere o estatuto de ponte levadiça mais alta da Europa. 

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