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Alcalá: a cidade dos dois mártires e dos três imortais

Por Sousa Ribeiro

Património Mundial da Humanidade desde 1998, Alcalá de Henares, tão próxima de Madrid, encerra uma história rica no mundo das letras, uma outra trágica ligada à decapitação de duas crianças e ainda uma outra, eterna e sem fronteiras, escrita por Miguel de Cervantes e de uma forma tão bela que D. Quixote e Sancho Pança deixaram de ser personagens ficcionais para se transformarem em seres com vida.

As crianças permanecem por uns segundos na dúvida, dividindo-se entre as esculturas de D. Quixote e Sancho Pança, sentados num banco de pedra e de costas voltadas para a fachada da casa onde nasceu Miguel de Cervantes, no número 48 da Calle Mayor.

- E a quem chamam D. Sancho Pança? – perguntou Sancho.

- A vossa senhoria – respondeu o mordomo -, que nesta ínsula nunca entrou outro Pança se não o que está sentado nesta cadeira.

- Pois fique a saber, irmão – disse Sancho -, que eu não tenho dom, nem em toda a minha ascendência o houve nunca: Sancho Pança me chamam sem mais, e Sancho se chamou meu pai, e Sancho meu avô, e todos foram Panças, sem acrescentos de dons ou donas; e eu imagino que nesta ínsula deve haver mais dons que pedras; mas chega: Deus entende-me e poderá ser que se o governo durar quatro dias, eu escardiarei estes dons, que, pela grande quantidade, devem maçar como os mosquitos.

Os pequenos, com rostos emoldurados por sorrisos dóceis e com gestos pueris, baloiçam entre um e outro personagens da obra de Miguel de Cervantes no momento da fotografia que a professora, com menos tempo mas mais paciência do que eles, se prepara para transformar numa memória que irá perdurar, como o livro do escritor, talvez ao longo de muitas gerações. Já mais calmos, precipitam-se todos de uma vez para o interior da casa renovada e transformada em museu em 1956 e, em silêncio, num espaço que lhes parece inspirar um profundo respeito, vão visitando cada uma das 13 salas que evocam a vida de uma família castelhana nessa época e lançam olhares demorados à colecção de edições de D. Quixote provenientes de todo o mundo. 

- Agora te digo, Sanchozeco, que és o maior velhaquinho que há em Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo – não acabaste de dizer-me agora que esta princesa se transformara numa jovem chamada Doroteia e que a cabeça que julgo que cortei a um gigante era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na maior confusão em que estive em todos os dias da minha vida? Juro… - e olhou o céu e apertou os dentes – que vou dar cabo de ti, de tal modo que ponha sal na moleira de quantos escudeiros aldrabões de cavaleiros andantes houver no mundo, de hoje em diante! 

A manhã ainda nem se espreguiçava, não mostrava mais do que os primeiros alvores do dia, o céu tingindo-se rosa, logo depois de um azul pálido, banhando com a sua luz tão tímida a estátua de Miguel de Cervantes que se recorta na praça, os campanários, as fachadas dos edifícios mais magnificentes sobre os quais não conseguira pousar um olhar na véspera, quando a penumbra já há muito se instalara sobre a cidade e o cansaço há muito mais tempo no meu corpo exausto. 

“E assim, sem dizer a ninguém a sua intenção e sem ninguém o ver, numa alvorada, antes de ser dia, um dos calorosos de Julho, armou-se com todas as armas, montou em Rocinante, posta a sua celada mal consertada, enfiou a adarga no braço, empunhou a lança e por uma porta traseira de um terreiro deixou a sua casa, com enorme contentamento e alvoroço por ver com quanta facilidade principiara o seu bom desejo.”

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