As crianças permanecem por uns segundos na dúvida, dividindo-se entre as esculturas de D. Quixote e Sancho Pança, sentados num banco de pedra e de costas voltadas para a fachada da casa onde nasceu Miguel de Cervantes, no número 48 da Calle Mayor.
- E a quem chamam D. Sancho Pança? – perguntou Sancho.
- A vossa senhoria – respondeu o mordomo -, que nesta ínsula nunca entrou outro Pança se não o que está sentado nesta cadeira.
- Pois fique a saber, irmão – disse Sancho -, que eu não tenho dom, nem em toda a minha ascendência o houve nunca: Sancho Pança me chamam sem mais, e Sancho se chamou meu pai, e Sancho meu avô, e todos foram Panças, sem acrescentos de dons ou donas; e eu imagino que nesta ínsula deve haver mais dons que pedras; mas chega: Deus entende-me e poderá ser que se o governo durar quatro dias, eu escardiarei estes dons, que, pela grande quantidade, devem maçar como os mosquitos.
Os pequenos, com rostos emoldurados por sorrisos dóceis e com gestos pueris, baloiçam entre um e outro personagens da obra de Miguel de Cervantes no momento da fotografia que a professora, com menos tempo mas mais paciência do que eles, se prepara para transformar numa memória que irá perdurar, como o livro do escritor, talvez ao longo de muitas gerações. Já mais calmos, precipitam-se todos de uma vez para o interior da casa renovada e transformada em museu em 1956 e, em silêncio, num espaço que lhes parece inspirar um profundo respeito, vão visitando cada uma das 13 salas que evocam a vida de uma família castelhana nessa época e lançam olhares demorados à colecção de edições de D. Quixote provenientes de todo o mundo.
- Agora te digo, Sanchozeco, que és o maior velhaquinho que há em Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo – não acabaste de dizer-me agora que esta princesa se transformara numa jovem chamada Doroteia e que a cabeça que julgo que cortei a um gigante era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na maior confusão em que estive em todos os dias da minha vida? Juro… - e olhou o céu e apertou os dentes – que vou dar cabo de ti, de tal modo que ponha sal na moleira de quantos escudeiros aldrabões de cavaleiros andantes houver no mundo, de hoje em diante!
A manhã ainda nem se espreguiçava, não mostrava mais do que os primeiros alvores do dia, o céu tingindo-se rosa, logo depois de um azul pálido, banhando com a sua luz tão tímida a estátua de Miguel de Cervantes que se recorta na praça, os campanários, as fachadas dos edifícios mais magnificentes sobre os quais não conseguira pousar um olhar na véspera, quando a penumbra já há muito se instalara sobre a cidade e o cansaço há muito mais tempo no meu corpo exausto.
“E assim, sem dizer a ninguém a sua intenção e sem ninguém o ver, numa alvorada, antes de ser dia, um dos calorosos de Julho, armou-se com todas as armas, montou em Rocinante, posta a sua celada mal consertada, enfiou a adarga no braço, empunhou a lança e por uma porta traseira de um terreiro deixou a sua casa, com enorme contentamento e alvoroço por ver com quanta facilidade principiara o seu bom desejo.”