“Já alguma vez se apaixonou por uma cidade?” A pergunta não figura no brasão de armas da cidade, ao invés, consta, como frase-chamariz, na carta de candidatura a Capital Europeia da Cultura de 2016 (entretanto perdida para a vizinha Wroclaw). Enquanto me debato com a oportunidade da pergunta, guindo o olhar para a torre sineira da Ratusz, excelso edifício de três pisos sustentado em arcadas. Sinto-me varado por uma sensação de déjà vu, enquanto aguardo o badalar das 12 horas. A memória remete-me para Cracóvia, 450km a sul, e ao trompetista que, em 1240, do alto do campanário da igreja de Santa Maria, advertiu a população para o ataque iminente dos tártaros. Compassada, a melodia continua a fazer-se ouvir a cada hora, direccionada para os quatro pontos cardeais, e cessando precisamente na nota em que, há 775 anos, a garganta do músico foi fatalmente trespassada por uma seta invasora.
Aqui a música e os intérpretes são outros. Com os cortinados do céu escancarados, torrentes de uma luz estranhamente abrasadora despencam sobre os olhares que se cravam na câmara municipal, a Ratusz. Miro o ponto onde duas cabras montesas se aprestam a marrar uma na outra, corporizando uma das muitas lendas de uma cidade fabulosa. É assim à hora certa. E tem uma explicação, segundo Markusz, guia de um grupo de canadianos.
“Quando a Câmara foi reconstruída, após um grande incêndio (1536), decidiu-se instalar um grande relógio na torre. O acontecimento seria celebrado com um sumptuoso banquete, com a presença de figuras eminentes da região. O prato principal, pernil de veado, ficou a cargo do jovem Pietrek. Lá em baixo, na praça do mercado, a azáfama era de tal forma apelativa que o cozinheiro se abstraiu com as distracções, enquanto o assado era reduzido a cinzas após ser consumido pelas labaredas. Aterrorizado, acorreu a um prado nas imediações onde comprou dois machos caprinos, arrastando-os pelos chifres até à cozinha da câmara municipal. Pressentindo a fatalidade, os animais escapuliram ao jovem trepando torre acima, onde, chegados, começaram às marradas, para espanto, primeiro, e gáudio, depois, da multidão que, do piso inferior, os observava com estupefacção. O espectáculo divertiu o alcaide e demais comensais. Perdoado Pietrek, construiu-se um mecanismo em que os bodes seriam os responsáveis por anunciar o meio-dia. Até hoje.”
Não somos muitos instalados na plateia. No meu banco de madeira tosca, tendo por horizonte próximo um colorido friso de casinhas de bonecas, acomodam-se três pessoas, eu e duas jovens enfiadas em abrasantes fatos de cabrinhas quando, a pique, os braços do sol nos abraçam com severidade. Elas estão ali como símbolos vivos da cidade para se deixarem fotografar a troco de um punhado de zlotys. Meio-dia: algumas cornadas bem dadas e cai o pano sobre o duo de intérpretes. Fim de festa.
Estudar e protestar
No trajecto para a emblemática Stary Rynek, ou praça do antigo mercado, cruzei-me com uma turba estudantil, uma espécie de corvos negros à escala humana, numa azáfama própria de novel ano lectivo. A Universidade Adam Mickiewicz (que perpetua o “pai” do romantismo polaco, 1798-1855) é uma das quatro universidades oficiais, a que se juntam outras tantas faculdades e dezassete escolas particulares de ensino superior. No total, estes estabelecimentos de ensino albergam cerca de 142 mil alunos, perfazendo 221 alunos por cada 1000 habitantes, tornando Poznan na cidade com maior percentagem per capita de estudantes universitários. O imponente edifício, de estilo neo-renascentista alemão, franqueou portas a 7 de Maio de 1919, precisamente quatro séculos após a fundação da vetusta Academia Lubrañski de Poznan, e por ali passaram estudantes como Józef Pilsudski (primeiro chefe de estado da Segunda República da Polónia), Ferdinand Foch (chefe dos exércitos aliados da I Grande Guerra) Maria Sklodowska-Curie (duas vezes prémio Nobel) ou Ignacy Paderewski (notável pianista e político).