Ao lado, três homens tratam das pizzas num frenesim coordenado: o mais novo, t-shirt da selecção italiana, coloca-as no forno redondo; o do meio estende a massa para as bases; o mais velho, barrigudo, fio de ouro e pulseira de prata, mergulha pedaços de pizza fritta inchada em óleo enquanto chupa um cigarro entremeio dos lábios.
À noite, as filas sucedem-se à porta dos restaurantes mais populares (a Di Matteo e a sua pequena sala no primeiro andar não são excepção). Digestão feita, as principais vielas do centro histórico transformam-se numa espécie de Bairro Alto alfacinha. Tudo acontece na rua. São poucos os bares que encontramos, a maioria botequins de frigoríficos self-service com garrafas e latas de cerveja e um balcão com salgados gordurosos para forrar o estômago na madrugada bebida.
O centro nevrálgico da animação acontece na Piazza Bellini. O largo recebe o nome (e estátua) de um compositor italiano que fez escola no vizinho conservatório, ali perto ficam a Academia de Belas Artes e a biblioteca da Faculdade de Letras e Filosofia, mas à noite toda a erudição é parda.
A música que se ouve na praça apinhada de jovens – muitos locais e turistas – divide-se entre djambés e percussões várias, às vezes uma guitarra, e a electrónica má que chega dos botequins em volta. Não há mão sem garrafa de cerveja e cigarro de tabaco ou de haxixe. É o contraste absoluto com o bairro chique de Chiaia, junto ao passeio marítimo, repleto de gente bem vestida que vagueia pelos bares modernos e boutiques caras.
De Nápoles, não se vê o chão
- Buongiorno. Castel Sant'Elmo?
- Sì, qui è la funicolare.
- No. Queremos ir a pé.
- A piedi?
A subida íngreme de infinitas escadarias e rampas, uns bons 40 minutos entre sombra, um sol impiedoso e pequenas pausas, justificaria aqueles olhares, misto de espanto e reprovação por tal insensatez. O esforço vai sendo, no entanto, recompensado em vistas sobre parte da cidade, até desafogar em larga e esplendorosa panorâmica no miradouro junto ao Castel Sant'Elmo, altiva fortaleza do século XIV em formato de estrela, e vizinho Museo di San Martino, um antigo mosteiro.
Daqui, o olhar alcança quase toda a cidade encaixada no vale, as montanhas desvanecidas a contornar o horizonte, o porte negro do Vesúvio com a sua boca colossal a furar os céus. É a primeira vez que o vemos, sempre escondido entre prédios cerrados e ruas estreitas. Conta Erri de Luca em Nàpoli que, apesar de pouco o verem, todos os napolitanos sabem onde fica: “O vulcão está plantado como um farol no nosso sistema nervoso”.
É na miragem da montanha, e já à distância das fotografias que ali tirámos, que voltamos a olhar a paisagem. Assalta-nos a ideia de uma revelação: dali vemos a fachada altiva e o telhado verde da igreja de Santa Chiara, sobressaem no retalho de telhados duas ou três cúpulas de outras igrejas, vemos vulcão e até vislumbramos o mar. Só não encontramos chão. Custamos mesmo a descortinar nos vazios deixados entre os prédios as ruelas e avenidas que tanto nos fartámos de percorrer. E logo nos lembramos de novo livro A Amiga Genial, o primeiro da tetralogia que Elena Ferrante pôs recentemente nos tops internacionais.