Aos 10 anos, Lila e Lenú, as personagens principais que terão vivido a infância num bairro pobre da periferia de Nápoles, nunca tinham visto o Mediterrâneo. “Lila disse que na direcção do Vesúvio ficava o mar. Rino, que já lá tinha estado, contou-lhe que a água era azul e cintilante, uma visão maravilhosa.” A verdade é que não precisamos de chegar à periferia para nos sentirmos submersos pela malha apertada da cidade. E o mar, ali a dois passos, fica tão longe da vista quanto da memória.
Entretanto, viramos costas ao tapete urbano, contornamos o castelo e voltamos a recusar a boleia de outro funicular. Descemos antes, errantes, por entre casas encavalitadas na encosta e ermos becos sem saída, embrenhando-nos em bairro alheio e andrajoso, que um colorido e inusitado altar, os entendais de roupa e o sol iluminador tornam cândido e inofensivo. Um cão corre para nós de peluche na boca e estamos prestes a dar-nos por definitivamente perdidos quando encontramos uma mulher num pátio interior. Não fala inglês, mas sinistra, destra e scendere já se tornaram parte do nosso reduzido vocabulário de turista e guiam-nos até ao caminho certo: novo rol infinito de escadas por ali abaixo, o mar azul a emoldurar-se à nossa frente.
Vamos descendo até à nobre baixa, feita de mais castelos e portentosos edifícios. Na Piazza del Plebiscito, a igreja de San Francesco di Paola surge monumental em semicírculo, quase ofuscando o Palácio Real, em frente e de fachada entaipada. Atrás, fica o Teatro di San Carlo, a mais antiga ópera em funcionamento em Itália, também em obras; e ali perto, já o Mediterrâneo como pano de fundo, sobressaem os torreões enegrecidos e a ornamentada porta do Castel Nouvo, construído durante o reinado de Carlos I, primeiro rei de Nápoles, no século XIII. Temos sede de mar e as pernas conduzem-nos instintivamente para lá, desenhamos o contorno em concha da baía de Nápoles. Pequenos barcos de madeira aninham-se junto à costa, um casal pesca sobre o molhe.
Em breve alcançamos o terceiro e mais antigo castelo da cidade, o Castel dell'Ovo, assim apelidado numa lenda antiga: Virgílio, o famoso poeta latino, ali teria escondido um ovo mágico que manteria a fortaleza em pé. Quando chegamos já está encerrado e, por isso, deixamo-nos ficar sentados sobre a língua murada que liga o passeio marítimo ao minúsculo ilhéu de Megarides, onde assenta o castelo de pedra erguido pelos normandos; o céu pintando-se de um soberbo pôr do sol.
“Bem podemos dizer, contar, pintar o que quisermos: o que se vê aqui é mais que tudo isso”, dizia Goethe de Nápoles, quem sabe inspirado por igual crepúsculo. De um lado, o Vesúvio desvanece-se de rosas e lilases, emoldurado entre um cenário de nuvens fofas e os mastros dos veleiros no porto. Do outro, o sol cai lentamente atrás dos bairros luxuosos de Posillipo, as casas sobre a encosta a passar dos pastéis aos dourados aos negros, três miúdos à cana sobre o molhe. Todos miramos o mesmo inebriante caleidoscópio como se de um acto solene se tratasse. Goethe, uma vez mais: “Vedi Napoli e poi muori!, dizem aqui. “Vê Nápoles e morre!”