Fugas - Viagens

  • Nelson Garrido
  • Daniel Rocha
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  • Daniel Rocha
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos

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Silêncio, vamos entrar no templo dos livros

Ela chamava-se Nora Barnacle; ele James Joyce. Nora Barnacle passou a ser a sua companheira, mais tarde a sua mulher. Mais ou menos à mesma distância, mas para o lado oposto ao do Trinity College, está a Merrion Square, onde Joyce queria encontrar-se com Nora. No percurso entre o hotel e a praça ambos passavam pelo número 21 da Clare Street, onde o pai de Samuel Beckett geria o seu negócio e onde este último começou a escrever a sua novela Murphy.

Por essa altura, em 1904, James Joyce começava a escrever Dublinenses.

O escritor irlandês e Nora Barnacle encontravam-se, segundo rezam as histórias, mesmo em frente à casa onde viveu William Wilde e onde o filho, Oscar Wilde, foi criado, um lugar que, com inusitada frequência, era palco de festas que se prolongavam madrugada dentro. Bram Stoker, autor de Drácula e que conhecia Oscar Wilde do Trinity College, era uma visita frequente da casa — e casou mesmo com uma antiga namorada do autor de, entre outros, O retrato de Dorian Gray.

A Clare Street e a Merrion Square estão intimamente ligadas à literatura irlandesa, a alguns dos seus nomes mais sonantes e, pelo menos para quem está identificado com estas intrigas — de outro modo são lugares vulgares na capital —, funcionam como uma espécie de anzol para uma imersão nesse admirável mundo que é a biblioteca do Trinity College, a universidade de Dublin.

Quando dela nos aproximamos, percorrendo agora a Nassau Street, uma artéria predominantemente comercial, parece envolta numa atmosfera rural, com as árvores e os espaços verdes que a rodeiam, numa quietude apaziaguadora. Fundada em 1592 pela rainha Isabel, numa tentativa de contrabalançar a influência papista, a universidade encarnava, até há bem pouco tempo, o Protestantismo da Coroa Britânica — com efeito, salvo uma autorização especial, até 1968 nenhum estudante católico (hoje representam dois terços) podia sentar-se nas cadeiras do Trinity College, eternamente associado a um bastião protestante e visto pela igreja católica, desde o século XIX, como um “perigo moral”. Por essa razão, o cardeal John Henry Newman criou, em meados do século XIX, em St. Stephen’s Green, a universidade católica de Dublin, onde James Joyce foi um aluno brilhante.

Samuel Beckett, Prémio Nobel da Literatura, estudou no Trinity College, um lugar mágico que abriga uma das mais bonitas bibliotecas da Europa (e a mais antiga do continente) e do mundo e que produz em quem a visita uma sensação de paz que tarda em dissipar-se.  Anne Enright, vencedora do Man Booker 2007, com O encontro — como se falasse de Joyce e Nora —, também estudou, na década de 1970, no Trinity College, que todos os anos atrai meio milhão de visitantes, muitos deles em busca do Livro de Kells, uma compilação de evangelhos de uma beleza ímpar da autoria dos monjes da abadia homónima.

As estantes, repletas de livros, sobem, em dois andares, até um tecto abobadado, tudo de um castanho escurecido; são muitos, mas apenas uma pequena parte da colecção do Trinity College, mais de três milhões de um reportório que inclui um número considerável de obras no idioma irlandês, um catálogo de literatura infantil famoso em todo o mundo e ainda declarações assinadas na sequência da rebelião irlandesa de 1641, testemunhos de alguns protestantes que sobreviveram aos massacres dos católicos e que mais tarde, mas ainda na mesma década, serviram de argumento para a campanha de Cromwell, lançando as bases para um apoio público visando tomar medidas punitivas contra os irlandeses; no solo, um conjunto de colunas em madeira é encimado pelo mesmo número de bustos de eruditos que parecem contemplar o visitante com uma expressão que pretende conferir solenidade ao momento.

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