Fugas - Viagens

  • Ponte 25 de Abril, Lisboa, Portugal
    Ponte 25 de Abril, Lisboa, Portugal Enric Vives-Rubio
  • Tower Bridge, Londres, Reino Unido
    Tower Bridge, Londres, Reino Unido Neil Hall/Reuters
  • Ponte Juscelino Kubitschek, Brasília, Brasil
    Ponte Juscelino Kubitschek, Brasília, Brasil Ueslei Marcelino/Reuters
  • Ponte Juscelino Kubitschek, Brasília, Brasil
    Ponte Juscelino Kubitschek, Brasília, Brasil Ueslei Marcelino/Reuters
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    Ponte Vecchio, Florença, Itália Tony Gentile/Reuters
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    Ponte de Brooklyn, Nova Iorque, Estados Unidos Carlo Allegri/Reuters
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    Si-o-Seh, Isfahan, Irão Sousa Ribeiro
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    Harbour Bridge, Sydney, Austrália Daniel Munoz/Reuters
  • Seri Wawasan, Putrajaya, Malásia
    Seri Wawasan, Putrajaya, Malásia Bazuki Muhammad/Reuters
  • U Bein, Amarapura, Birmânia
    U Bein, Amarapura, Birmânia Jorge Silva/Reuters
  • U Bein, Amarapura, Birmânia
    U Bein, Amarapura, Birmânia Sstringer/Reuters

O mundo está cheio de pontes de vistas

Por Sousa Ribeiro

Umas históricas, outras românticas, outras capazes de provocar temor, outras futuristas. Todas pontes para serem admiradas pelo menos uma vez na vida.

Eu não tinha, nesse dia 6 de Agosto de 1966, nem sequer dois meses.

Uns anos mais tarde, vivendo uma infância feliz, longe de Lisboa, escutava as histórias da minha avó e das suas travessias do Douro a pé, para ir às compras a Mesão Frio. Ao longe, emolduradas pela janela da sala ampla da quinta, cintilavam as luzes da vila com as suas casinhas trepando as montanhas, quase tocando o céu escurecido. Pela manhã, chegavam-me os cheiros a café negro e a torradas feitas ao lume; depois corria para a janela e fixava-me num ponto, um pouco abaixo de uma mansão rosada, num cruzamento, contando os carros que se dirigiam em três direcções; as vinhas e a vegetação desciam até ao rio que me parecia intransponível; de quando em vez, passava um comboio, quebrando aquele silêncio tão apaziguador e, aos domingos, no Verão, chegava-me aos ouvidos a música, de uma festa ou um baile; para cima, os montes majestosos, recortando os céus.

Tudo o que me atraía estava do outro lado da margem. Ali, à mão, naquele pequeno mundo que me preenchia, não tinha uma ponte.

A primeira recordação que tenho de atravessar uma, pelo menos com uma dimensão razoável, está bem presente na memória - de mão dada com a minha mãe, devia ter seis anos. A alvorada já se anunciava, a ponte de Mosteirô, ligando os concelhos de Cinfães e Baião, estava em obras, apenas se podia atravessar a pé; já na outra margem, onde outro autocarro nos esperava, pude ver, com olhos curiosos, os três imponentes pilares de pedra, aquela estrutura em ferro ainda mergulhada na semipenumbra, mais tarde substituída, devido à construção da Barragem de Carrapatelo, por uma outra com a assinatura de Edgar Cardoso – classificada pelo engenheiro com a sua mais bela obra. Novamente de mão dada com a minha mãe, nesse mesmo dia, atravessei, com passos receosos, o tabuleiro inferior da Ponte Luís I, ignorando que, uns anos mais tarde, já adolescente, iria passar na Ribeira muitas horas das minhas tardes, observando os rapazes, alguns mais jovens do que eu, mergulhando naquelas águas cor de chá.

Agora me dou conta de que a Lisboa nunca havia ido e ainda haveria de esperar mais uns anos.

- Sabes a anedota dos dois portugueses que visitam Amesterdão e ao fim de algum tempo decidem aventurar-se, cada um para seu lado, pela cidade?

Tim Schilling sorri, sentado junto à porta envidraçada que dá para a movimentada Schelderstraat.

- Marcaram um encontro para mais tarde e sabes onde? Na ponte.

Amesterdão tem mais de mil pontes, cruzei muitas delas, umas mais românticas, outras mais históricas, de bicicleta. Algumas conhecia-as de nome, dos postais que o meu pai de vez em quando enviava. Que fascínio aquela cidade exercia sobre mim! Por vezes, ao final da tarde, sentava-me na esquina dos canais Reguliergracht e Herengracht e por ali ficava, olhando as pontes e os barcos sulcando as águas.

Só depois conheci Lisboa e a primeira vez que vi a Ponte 25 de Abril foi da janela de um avião proveniente de Amesterdão, precisamente 20 anos depois de ser inaugurada. Não imaginava que, durante outros 20, haveria de atravessá-la algumas dez mil vezes, ora fitando os cacilheiros que pareciam parados nas águas do Tejo, ora deleitando-me com a luz bonita e pura de Lisboa às primeiras horas da manhã, ora observando as luzes piscando quando a noite avançava. Desse dia, há 50 anos, pouco sei, apenas retenho ecos de histórias que li, de documentos que fui percorrendo com os meus dedos, desse tempo em que os ardinas ainda anunciavam os jornais. “A Ponte – a ponte sobre o Tejo, a maior da Europa e uma das maiores do Mundo, inaugurou-se hoje: foi dia de festa para o povo”, podia ler-se no Diário Popular. Rezam as crónicas que a construção (terá custado à época dois milhões e duzentos mil contos) foi abençoada pelo Cardeal Cerejeira, que se ouviu o hino nacional e se escutaram 21 tiros, que o primeiro carro a iniciar o trajecto de 2300 metros foi um carro da Polícia de Viação e Trânsito, atrás do qual seguiam dois outros, um transportando a mulher de Américo Tomás, Presidente da República, e o outro António de Oliveira Salazar, que, embora contra a sua vontade, deu o nome à ponte por onde o povo, como se fosse uma romaria, pôde finalmente circular às primeiras horas da tarde. Se é verdade que, por essa altura, o país tinha cerca de 400 mil automóveis, os 50 mil que no dia da inauguração atravessaram a ponte representam uma percentagem elevada – o dia era de festa, ninguém queria faltar ao “nascimento” daquela que foi considerada uma das grandes obras do regime, erguida em apenas quatro anos. Rebaptizada Ponte 25 de Abril após a revolução, serve-nos hoje de passagem, não para a outra margem, mas para outras pontes que nos fazem sonhar. Muitas outras caberiam neste espaço se houvesse espaço. É tudo uma questão de pontes de vista.

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