Ponte Vecchio
Florença, Itália
Não é fácil esquecer, embora cada vez mais distante, esse final de tarde, o sol dourando as águas calmas do Arno, subindo até às casas de tons amarelecidos, as cores crepusculares anunciando um entardecer mágico que se fazia acompanhar pela suave brisa que subia do rio, como se desejasse acariciar os pensamentos. A Ponte Vecchio é muito mais do que uma ponte, é um teatro de vida, uma criação de mil amantes, como diria, no seu papel de poeta, Miguel Ângelo, capaz de acelerar, com a sua visão, o ritmo cardíaco, de produzir vertigens, alucinações, de dar corpo a essa doença psicossomática sentida por Henri-Marie Beyle, muitos anos mais tarde conhecida como síndrome de Stendhal, o pseudónimo do escritor francês.
Documentos históricos atestam da existência de uma ponte sobre o Arno já em 966 mas a actual, calcorreada todos os dias por milhares de turistas, foi levantada em 1345, na sequência de uma cheia, gozando do estatuto de mais antiga da cidade de Florença (Itália). A sua construção é atribuída ao artista e arquitecto Taddeo Gaddi, um díscipulo de Giotto, mas há quem sugira, dada a sua harmonia e as suas proporções, o envolvimento de frades dominicanos na forma como foi planificada. A tese ganha maior credibilidade por ser conhecido o papel desempenhado por Giovanni da Campi, um frade da igreja de Santa Maria Novella, na reconstrução (com os seus arcos amplos e rebaixados, uma especialidade dos dominicanos), entre 1334 e 1337, da Ponte alla Carraia, próxima da Ponte Vecchio e destruída pela forte corrente em 1333 — Giovanni da Campi faleceu três meses após o início das obras na Ponte Vecchio mas nada prova que não tenha participado no projecto.
Inicialmente em madeira, as mais de quatro dezenas de lojas que as entidades locais alugaram a comerciantes na Ponte Vecchio eram agora em pedra, para não correrem o risco de se incendiar. Numa primeira fase, os negócios eram variados mas em meados do século XV o governo concedeu esse privilégio ao Grémio dos Talhantes, a quem vendeu (bem como a curtidores que utilizavam urina de cavalo para curtir as peles), em 1495, esses espaços que não tardaram a tornar-se sórdidos.
Quase cem anos mais tarde, em 1593, pensando no bem-estar da população (e no seu próprio bem-estar), o grão-duque Ferdinando I desalojou os comerciantes e substituiu-os por joalheiros e ourives, diminuindo os odores e aumentando as receitas. Ainda antes, em 1565, nascia, no lado oriental da ponte, o Corridoio Vasariano, um corredor desenhado por Giorgio Vasari a pedido dos Medici (uma poderosa família de banqueiros que governou Florença e, mais tarde, a Toscana durante três séculos), que acabavam de se mudar do Palazzo Vecchio para o Palazzo Pitti e necessitavam de uma ligação entre este último e os Uffizi (destinados a escritórios da magistratura do estado toscano e actualmente a maior galeria de arte de Itália) para não se sujeitarem a caminhar ao lado do povo.
Aparentemente construída como sistema de defesa — com multas para quem danificasse as suas paredes — a ponte começou, mais ou menos por essa altura (e ainda no século XVII), a ganhar uma outra forma, com lojas (e janelas) apoiadas em suportes de madeira debruçando-se sobre o Arno, precisamente com o aspecto que hoje nos oferece.