Maria do Rosário gosta de falar. Fala pelos cotovelos. Em minutos, desfia o novelo do passado com a avidez de quem quebra a solidão com a chegada de visitas. Recorda o marido, a vida difícil no campo, o tempo em que “o povo saloio se alimentava a pão e batatas”. “O mundo velho está a acabar de terminar”, lamuria-se. Leva-nos por cada recanto da fábrica e depois até à igreja, mesmo em frente. É a única moradora na localidade que tem as chaves. Em pano de fundo, ouvem-se os miúdos no recreio da nova escola primária da freguesia, inaugurada em 2008 — e quanta vida trazem aqueles gritos e gargalhadas a uma localidade quase deserta. A igreja de Santo Estevão é a única que, apesar de estar localizada no concelho de Mafra, pertence à vigararia de Loures. Os padres não querem que Maria mostre a igreja fora de horas — há que ir à missa, quartas e domingos —, mas hoje abre uma excepção para vermos uma rara imagem da Santíssima Trindade, feita em pedra. “Foram proibidas pelo Concílio de Trento [no século XVI] e a maioria acabou destruída”, conta Mário Pereira. Esta terá sido escondida, enterrada nos campos. “Já vivia cá quando foi descoberta”, recorda Maria.
Aldeia saloia renascida
Se a casa de moagem e panificação de Santo Estevão das Galés figura quase como espaço museológico de um “mundo velho” prestes a findar, a Aldeia da Mata Pequena é uma localidade resgatada ao passado. Foi ali perto que começámos este périplo pelo concelho. Num ano em que se assinalam não só 300 anos desde a colocação da primeira pedra do Palácio Nacional de Mafra, como o fim da última comissão de serviço de Mário Pereira enquanto director do monumento, desafiámo-lo a guiar-nos por alguns dos seus locais preferidos em Mafra. O resultado é um retrato do concelho tão ecléctico quanto completo e inesperado, atrevemo-nos a dizer. Tem campo e mar, pão e vinho. Tem pessoas, monumentos e natureza. Tem geologia, história e tradições. Tem igrejas, quintas e fortes. E palácio, claro.
O Penedo do Lexim, vestígio de uma antiga chaminé vulcânica, foi o ponto de partida. O rochedo cinzento irrompe crispado entre o arvoredo, impondo-se sobre um vasto vale predominantemente agrícola, junto à ribeira de Cheleiros. Na última erupção, há milhões de anos, o magma terá arrefecido lentamente, formando as características colunas prismáticas de basalto. O fenómeno “é semelhante à Calçada dos Gigantes, na Irlanda do Norte”, compara Mário Pereira. Mas enquanto lá é possível saltitar sobre os prismas rochosos, aqui erguem-se aos céus para formar uma espécie de muralha natural. Um estratégico castelo de penedos que terá sido ocupado por pastores e agricultores “desde o século IV a. C. [período do Neolítico] até à Idade do Bronze”. Foram encontrados fragmentos de cerâmica, copos, pratos, vasos, queijeiras e utensílios em cobre. Além de ser parte importante do “património geológico” de Mafra, o Penedo do Lexim constitui um dos sítios arqueológicos mais relevantes do concelho e do período Calcolítico a nível peninsular.