Depois de uns anos 1990 “um pouco preocupantes” devido ao crescimento exacerbado da construção no concelho de Mafra, James Frost sente uma “mudança de atitude”. As pessoas estão a voltar “a dar valor às coisas antigas” e a “reconhecer a importância da parte agrícola do concelho”. Os limões, o vinho, a horta. “É o que caracteriza Mafra e é importante manter a tradição dos povos e das aldeias”, defende. Para Mário Pereira, é esta “dimensão do que é fruído, vivido, este sentimento de pertença que dá sentido ao próprio conceito de património”. É que é de património que falamos sempre ao longo desta viagem. Ambiental, histórico, cultural.
Na Picanceira, negligenciamos a Quinta dos Machados propriamente dita para concentramos atenções no Bairro dos Ilhéus, “uma das primeiras construções operárias erguidas em Portugal”. No caminho, visitamos brevemente a Tapada Nacional de Mafra, onde voltaríamos dias depois para dormir entre os sons da natureza (ver texto nestas páginas). Agora estamos um pouco mais a norte, à entrada da pequena localidade da Picanceira. Sobranceira a uma curva da EN9, ergue-se uma inesperada parede de casas. Apenas a silhueta arredondada do forno de lenha e a chaminé permitem adivinhar os limites entre cada uma das 23 exíguas habitações unifamiliares.
O bairro operário foi construído no final do século XIX pelo proprietário da quinta, o industrial açoriano Domingos Dias Machado, para albergar o contingente populacional que fez chegar dos Açores para empregar na propriedade agrícola, à época uma das mais importantes no concelho. Daí a alcunha “ilhéus”, que saltou da gíria para a toponímia da rua traseira. O casario mistura influências da arquitectura popular da região e do arquipélago, formando um “conjunto arquitectónico singular”.
Mar e mar, lutar e rezar
Ao segundo dia, o passeio faz-se mais curto, leve e solitário. Com cheiro a história e a mar. Para Mário Pereira, o concelho de Mafra é feito de contrastes. Entre o construído pelo homem e o criado pela natureza. Entre o campo e o mar. É em direcção ao Atlântico que partimos. Primeira paragem: Forte do Zambujal.
Numa dobra apertada da estrada que liga Mafra à Carvoeira surge um pedaço de terra batida, pronta a receber os carros de quem visita o 95.º posto defensivo das Linhas de Torres. No cume do monte, eleva-se a construção militar mais complexa de toda a segunda linha de defesa, o Forte do Zambujal, recuperado em 2009. Sobressaem as pequenas muralhas de pedra, os morros de terra para proteger os soldados do fogo inimigo, a praça de armas e, para lá do túnel escavado na rocha, a bateria avançada munida de duas bocas de fogo. Era uma das 45 fortificações das Linhas de Torres localizadas em Mafra (153 no total), guarnecida por 250 homens. A vista panorâmica alcança as várias aldeias localizadas nos montes em redor, o vale fértil de talhões agrícolas ao longo do rio Lizandro e segue até ao mar, despontando atrás do desfiladeiro de Fonte Boa da Bricosa.
Aos nossos pés, vemos a Igreja da Senhora do Ó, entre obras de recuperação das fachadas. Visitamos brevemente o interior e seguimos caminho em direcção à capela de São Julião. Mais tarde, ficaremos a saber que o alpendre e o muro da igreja terão servido de trincheira aos portugueses comandados por Mateus Álvares, quando em 1585 este se fez passar por D. Sebastião, resistindo à ocupação filipina. É curiosa a coincidência do percurso, que nos leva agora a São Julião, onde viveu como eremita o auto-proclamado rei da Ericeira.