Mas bem mais valiosa é a vista do topo, um perfeito horizonte ondulante de dunas coradas, moldadas e mantidas pelo vento, que por aqui sopra em várias direcções. São elas que escondem o algo arrepiante Deadvlei, bem mais famoso do que o recatado Hiddenvlei, e também mais cénico. O jogo de contrastes ajuda. Colossos de areia rubra ao fundo (a Big Daddy ainda parece maior), árvores negras sem vida, chão perfeitamente alvo e liso. E a coroar tudo isto uma gritante moldura azul.
Trata-se de um “charco morto”, como o nome indica, uma outra bacia de argila branca, mas com uma história diferente. Noutros tempos, a água do Tsauchab chegava até cá depois das chuvas, criando pequenas piscinas rasas. Foi o suficiente para nascerem Vachellia erioloba, ou seja, típicas acácias. O clima mudou, no entanto. As dunas ganharam vida, começaram a cercar a zona e bloquearam a passagem do rio. E as árvores, essas, acabaram por morrer e secar. Hoje, os seus esqueletos cor de ébano, com centenas, quase mil anos de idade, são o testemunho doutro mundo. Não é por acaso que Deadvlei já foi cenário de filmes de ficção científica — é doutro mundo.
Notas de viagem
Um pneu furado com sabor a tarte de maçã em Solitaire
“Welcome to Solitaire”, deseja o letreiro, ao lado de uns quantos destroços de carros antigos, enterrados na areia. Charmosos, claro, como qualquer poética ruína. Um pneu furado, pão nosso de cada dia para qualquer viajante de carro na Namíbia, determinou uma paragem mais prolongada aqui, a única civilização com posto de gasolina na estrada que liga Walvis Bay às famosas dunas de Sossusvlei, a quase 400 quilómetros de distância. E ao fim de três horas de viagem, com mais duas pela frente, por caminhos de gravilha com muitos altos e muitos baixos, a mensagem de boas-vindas soa algo irónica, sobretudo a olhar para o cenário apocalíptico que a circunda. E o nome, Solitaire. Que, viemos a saber depois, tem toda uma novela por trás, tendo inspirado inclusive o primeiro livro do escritor e realizador holandês Ton van der Lee, o terceiro habitante (de sempre) desta pequena terra.
Por se encontrar à entrada do Parque Nacional de Namib-Naukluft, onde se encontra parte do antiquíssimo deserto do Namibe, Solitaire é um ponto de paragem obrigatório para muitos turistas. O que quer dizer muito para uma terra no meio do deserto que não aloja mais do que cem habitantes e que se resume ao tal posto de gasolina, um mecânico, uma loja, uma capela e um lodge. E, claro, à padaria-pastelaria Moose Macgregor Desert Bakery, conhecida pela tarte de maçã, “a melhor da Namíbia”. Confirma-o Yvette Naris, a jovem supervisora da pastelaria, que todos os dias prepara tabuleiros e tabuleiros desta iguaria. “Vem gente de todo o país para a comer”, afiança, enquanto serve mais um cliente. “Acabou de sair, está quentinha.”
Natural de Tsumeb, a jovem chef recém-formada concorreu a este trabalho e foi aceite. Deixou a cidade natal há oito meses para se mudar para o deserto, a quase 700 quilómetros de distância. É “difícil”, confessa, as saudades da família apertam. Só voltará a vê-la em Julho: ao fim de dois meses de trabalho (com folgas pelo meio) tem duas semanas livres, que usa para cruzar parte do país durante dois dias de viagem. “Tem de ser”, vai dizendo, de sorriso aberto e olhos carregadinhos de futuro. Um dia, quer ter o seu próprio negócio: “Uma pequena pastelaria e um pequeno restaurante”. “No deserto não”, talvez na sua cidade. A avaliar pela tarte (provada e aprovada), terá sucesso. Quem diria que um pneu furado saberia tão bem?