Pouco passa da meia-noite quando chegamos a Plum Village. A esta hora, o maior mosteiro budista da Europa resume-se a uma mão cheia de edifícios térreos indistintos na penumbra. A distância das cidades mede-se pela quantidade de estrelas no céu, pelo burburinho incessante dos insectos no jardim. Não se vê ninguém, não se ouve ninguém. Sente-se apenas uma quietude húmida e quente, a antever tempestade de Verão. Para trás, ficou uma viagem de avião até Bordéus, um autocarro até à estação de caminhos-de-ferro da cidade, um comboio até Sainte-Foy-la-Grande e 45 minutos de carro. Partimos de Lisboa antes das 17h, chegamos ao sul rural de França aos primeiros minutos do dia seguinte.
Ao volante, no último trajecto até Plum Village, guia-nos Max – diminutivo de uma vida que o ucraniano suspendeu em 2014 ao tornar-se irmão Dai Luong (Grande Capacidade). Será o único monge a dizer-nos o nome de nascimento, antes mesmo da “alcunha” vietnamita que a comunidade monástica lhe atribuiu. Fá-lo, diz, “para facilitar”. Talvez porque já percebeu que somos virgens nestas andanças. Talvez porque há meros cinco anos Max estava exactamente no nosso lugar. O monge baixo e franzino, de olhos azuis muito vivos e borbulhas nas bochechas, era então jornalista numa revista alemã, tal como nós a caminho de um retiro em Plum Village para uma reportagem. Tinha 20 anos e aquela semana mudou-o “profundamente”. Ainda regressou ao mosteiro durante as férias mas demitiu-se pouco depois para ficar por um ano. Não chegava. Ingressou como seminarista e está a completar os cinco anos de treino monástico. Faltam dois e confessa que ainda não decidiu o que fará a seguir: se fica no mosteiro ou se regressa à sociedade civil. Sabe apenas que não sente falta da vida anterior.
“O que mais me dava prazer era ler um livro e depois entrevistar o autor sobre o assunto”, recorda. Quando era jornalista, Max escrevia sobretudo sobre a “intersecção entre ciência, psicologia e religião”. A tríade, diríamos, não é inocente no novo caminho escolhido. “Aqui também tenho muitos livros e falo com pessoas muito interessantes.” A diferença? “Antes era tudo muito intelectual; vinha da cabeça. Agora, tem mais significado, é mais profundo. Vem cá de dentro”, conta calmamente, quase num sussurro, enquanto aponta para o peito.
Em Plum Village, deixamos os sapatos à entrada do edifício principal e subimos ao quarto. O gemer do soalho enche a noite. Das três camas, apenas uma está ocupada. Escolhemos a mais afastada para não acordar Ingrid, a alemã de ascendência mexicana que só conheceremos melhor na nossa última noite (partiremos terça-feira de manhã, três de oito dias volvidos). Pomos o despertador: 5h30. A primeira sessão de meditação começa às 6h.
Caminhar no silêncio
A escuridão que invadia o quarto quando nos deitámos é a mesma com que acordamos. Adormecido o zumbido dos bichos, são passos lentos sobre a gravilha os únicos sons que se ouvem lá fora. Na sala de meditação, sentam-se já dezenas de monges e de freiras budistas, mantos castanhos sobre o corpo e cabeças calvas, e centenas de jovens civis ainda estremunhados de sono. Espalhados pelo chão, sobram alguns tapetes e cadeiras livres. É aqui que confessamos: nunca meditámos na vida. De semelhante, se comparável, contamos um par de aulas de ioga. Mais nada. Escolhemos uma cadeira – não estamos preparados para tentar ficar na posição de lótus.